O perigo da moralidade como bem jurídico penal

Campo Grande/MS, 05 de agosto de 2024.

 

Winfried Bottke, antes de comentar interessante decisão da Corte Constitucional Federal alemã sobre a constitucionalidade do incesto, questionou se a doutrina dever-se-ia corrigir a si mesma por meio de decisões do Tribunal Constitucional. O sentido da pergunta dizia respeito à não proclamação de que um tipo penal só é legítimo para a tutela de bens jurídicos e não para evitar imoralidades, pois no julgado também se entendeu pela possível proteção penal da moral.[i]

Importo seu questionamento, pois o Supremo Tribunal Federal decidiu, já alguns anos, que no delito de casa de prostituição (art. 229, CP) não se tutela bem diverso à moral e aos bons costumes. Textualmente: “(…) no crime de manter casa de prostituição (…), os bens jurídicos protegidos em benefício de toda a coletividade são a moralidade sexual e os bons costumes, valores de elevada importância que, portanto, devem ser resguardados pelo Direito penal, não havendo que se falar em aplicação do princípio da fragmentariedade (…)”.[ii]

Seguindo Bottke, será possível, para legitimar uma incriminação, valer-se um Corpo Colegiado de Magistrados “Supremos” unicamente da moral e dos bons costumes?

Para responder à pergunta, deve-se considerar que a função da Ciência Penal não é somente de controlar criticamente a legislação, mas também de orientar o legislador e, com efeito, os julgadores. Os teóricos do Direito penal não podem somente censurar, mas devem sugerir – não obstante atentos aos riscos de críticas da própria doutrina e do desprezo do legislador e, ainda, dos magistrados – uma fundamentação dos limites do domínio político em matéria de criminalização.

Para Figueiredo Dias, embora pudesse citar outros penalistas, “não é tarefa do Direito penal, nem primária, nem secundária, proteger a moral”.[iii] Isso, pois, “impede-se que o Direito penal se atribua tarefas irreais como um agente de transformação social”.[iv] Curioso é que o então Ministro Ricardo Lewandowski destacou que “considerações de cunho moral não cabem, evidentemente, numa discussão jurídica como esta”, mas, mesmo assim, julgou de acordo com a relatora do processo, Min.ª Cármen Lúcia.

E realmente não cabem, pois se o preceito tutela somente a moral e os bons costumes, para esse objetivo haveria outros e melhores meios do que o Direito penal. Ademais, considerar que toda a sociedade é beneficiada com a incriminação é sugerir uma sociedade completamente intolerante (o que poderia legitimar a proibição penal da troca de casais, por exemplo), ou seja, é não avaliar que resulta muito duvidoso que seja plausível o recurso a um consenso social sobre a moral e os bons costumes em uma sociedade pluralista e complexa como a atual.

A Ministra relatora fez alusão à reforma legislativa operada pela Lei n. 12.015/2009. Pois bem. Com a atenta leitura, depreende-se a substituição da própria designação do respectivo título atinente aos crimes sexuais. Não se fala mais em crimes contra os costumes, aqui entendido como o fundamento ético-social ligado aos sentimentos gerais da moralidade sexual, senão em delitos contra a dignidade sexual. Como o fim legislativo é possibilitar que homens e mulheres disponham do próprio corpo do modo que bem entenderem, enaltecendo-se, portanto, a dignidade sexual, e sem olvidar, por evidente, as condições de realização da conduta, entendo que os juízes não devem alterar a avaliação legislativa (ou continuar enaltecendo a vontade anterior, como o fez a Ministra Cármen Lúcia) sob o pretexto de assegurar as expectativas sociais de “toda” a coletividade, pois, assim, deixam de proteger os reais bens jurídicos e passam a tutelar apenas a vigência da norma, justamente como propõe Jakobs.

Embora estivesse o delito ao qual se reporta a Ministra sob a tipificação prevista no título crimes contra os costumes – enfatize-se, antes da reforma – tem-se que tal concepção confronta um Direito penal pautado no texto constitucional e que rechaça toda sorte de disposições de cunho moral, pois “são atentatórios ao princípio da dignidade da pessoa humana, e, assim, ao postulado da alteridade”.[v] Esta consideração é útil, inclusive, para afastar o parecer da Procuradoria-Geral da República – em sentido contrário – a que fez referência a relatora.[vi]

Limitar à liberdade e à autodeterminação sexual o bem jurídico tutelado, como defendemos[vii], significa “substituir o objetivo genérico de tutela da moralidade sexual, por assim dizer, difusa, por bens jurídicos específicos que pretendam, de fato, preservar as condições de existência da sociedade ou os intangíveis valores da personalidade”.[viii] Ainda, com o abandono da moralidade sexual, simultaneamente deixa-se de imprimir vigilância ostensiva às pessoas, possibilitando que cada qual escolha o que melhor lhe aprouver, no caso, encontrar-se voluntariamente numa casa para a realização sexual de seus clientes. Significa, em síntese, valorizar a autonomia humana.

Como discorre Renato Marcão, “há que se buscar um sistema de regulamentação criminal menos hipócrita possível, no qual não existe espaço para a tutela de valores puramente morais”.[ix] Isso não significa, por certo, condescendência em relação a condutas delituosas que possivelmente possam ocorrer no interior desses locais, como o tráfico de mulheres ou de drogas. Contudo, para evitar tais comportamentos, não é necessário valer-se de concepções morais.

No mesmo julgado decidiu-se que “o princípio da adequação social, por si só, não tem o condão de revogar tipos penais”. O Superior Tribunal de Justiça também se pronunciou no sentido de que “a tolerância da sociedade ou o desuso não geram a atipicidade da conduta”[x] e “a eventual leniência social ou mesmo das autoridades públicas não descriminaliza a conduta”.[xi]

Realmente, não é em termos de adequação social que esse delito deverá ser analisado nas Cortes Superiores de Controle, e não defendo a descriminalização do delito por motivo de leniência da sociedade, mas sim, porque não há qualquer objeto jurídico a ser tutelado neste comportamento, salvo socorrendo-nos unicamente da moral ou dos bons costumes que, repita-se, deveriam ser repudiados penalmente, porém, assim não o fez a Ministra. É simples: sem bem jurídico tutelado não há de se falar em tipo penal e, em consequência, em adequação social.

Logo, respondendo à Winfried Bottke, entendo que, definitivamente, não é a doutrina penal que se deve adequar ao posicionamento do Supremo Tribunal Federal, mas sim, que seus integrantes estudem as teses doutrinárias e, portanto, deixem de seguir uma cartilha na qual o Direito penal é o Direito Judicial, e nada mais. Um colegiado que não exerce uma função crítica quanto ao bem jurídico tutelado favorece, talvez mesmo inconscientemente, a ocorrência de uma inflação de leis penais, uma vez que, sob os ombros da imoralidade, será capaz de ver-se mais adiante, ou seja, indiretamente, com o apoio da moral, poder-se-á, como menciona Luís Greco, “descobrir razões a partir das quais será possível justificar qualquer proibição penal”.[xii]

 

 

Leonardo Schmitt de Bem

Professor de Direito Penal, Processo Penal e Filosofia do Direito na

Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul.

 

 

[i] BOTTKE, Winfried. ¿Adiós a la exigencia de protección de los bienes jurídicos? In. Derecho Penal del Estado Social y Democrático de Derecho. Libro en homenaje a Santiago Mir Puig. Trad. Trapero Barreales, Jericó Ojer e Martínez Cantón. Madrid: La Ley, 2010) refere à decisão do BVerfG 2 BVR 392/07, de 26.03.2008.

[ii] 1ª Turma, HC n. 104.467/RS, rel. Min. Cármen Lúcia, de 08.02.2011.

[iii] DIAS, Jorge de Figueiredo. Questões Fundamentais do Direito Penal Revisitadas. São Paulo: RT, 1999.

[iv] DIEZ RIPOLLÉS, José. El bien jurídico protegido en un Derecho penal garantista. In. Jueces para la Democracia, n. 30, 1997.

[v] FRANCO, Alberto Silva; SILVA, Tadeu Antonio. Código Penal e sua Interpretação Jurisprudencial. 8ª ed. São Paulo: RT, 2007.

[vi] “(…) Temerário defender-se, assim, interpretação do texto constitucional que, a pretexto de prestigiar o exercício pleno das liberdades públicas, o faz em detrimento de princípio fundamental (…)”.

[vii] MARTINELLI, João Paulo Orsini; DE BEM, Leonardo Schmitt. Lições fundamentais de Direito penal. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2018.

[viii] PALAZZO, Francesco. Valores Constitucionais e Direito Penal. Trad. Gérson Pereira dos Santos. Porto Alegre: Fabris Editor, 1989.

[ix] MARCÃO, Renato. Casa de prostituição. O crime do art. 229 do Código Penal. In. Revista Síntese Direito Penal e Processo Penal, n. 65, Porto Alegre, IOB, 2011, p. 118.

[x] AgReg no REsp n. 1.167.646/RS, rel. Min. Haroldo Rodrigues, DJe 07.06.2010.

[xi] REsp n. 820.406, rel. p/ acórdão Min. Napoleão Nunes Maia Filho, DJe 20.04.2009.

[xii] GRECO, Luís. Tem futuro a teoria do bem jurídico? In. Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 82. São Paulo: RT, 2010.