Campo Grande, 26 de junho de 2024
Discussão sobre diferenciação de uso e tráfico começou em 2015
É preciso haver tratamento isonômico na aplicação da Lei de Drogas (Lei 11.343/2006) para garantir que a diferenciação entre usuários e traficantes não se dê segundo características como idade, condição econômica, cor da pele e grau de instrução da pessoa abordada, mas, sim, com relação à quantidade de entorpecente apreendida e às condições do flagrante.
Esse entendimento é do Supremo Tribunal Federal, que decidiu nesta terça-feira (25/6) descriminalizar o porte de maconha para consumo próprio.
Prevaleceu no julgamento o voto do ministro Gilmar Mendes, relator do caso. Ele foi acompanhado pelos ministros Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Alexandre de Moraes, Rosa Weber (hoje aposentada) e Cármen Lúcia.
Dias Toffoli fez no início da sessão desta terça uma complementação ao voto apresentado na semana passada, afirmando que votou pela descriminalização, mas considerando constitucional o artigo 28 da Lei de Drogas. Ele foi acompanhado por Luiz Fux.
Peso e medida
O tribunal ainda não estabeleceu a quantidade que diferencia uso e tráfico. A proposta com mais adesões até o momento é a do ministro Alexandre de Moraes: devem ser presumidos como usuários aqueles que guardam, adquirem, têm em depósito, transportam ou trazem consigo até 60 gramas de maconha, ou seis plantas fêmeas, desde que não haja indícios de tráfico, como a apreensão de balanças e cadernos com anotações referentes à venda de droga, entre outros.
Essa sugestão foi acompanhada até o momento por Gilmar Mendes, Luís Roberto Barroso, Rosa Weber e Cármen Lúcia.
O ministro Cristiano Zanin propôs 40 gramas, ou seis plantas fêmeas, e foi seguido pelo ministro Nunes Marques. O ministro André Mendonça sugeriu dez gramas, mas que a medida tenha validade só até o Congresso deliberar sobre o tema dentro de um prazo de 180 dias.
Edson Fachin votou pela necessidade de fixar objetivamente uma diferenciação, mas propôs que isso seja feito pelo Legislativo.
A proclamação do resultado, com a definição sobre a quantidade de maconha que diferencia usuário e traficante, deve ocorrer na sessão desta quarta-feira (26/6).
Além da maioria pela necessidade de definir critérios de diferenciação, há maioria para impedir o contingenciamento do Fundo Nacional Antidrogas; que parte da verba do fundo seja usada para campanhas sobre o uso de drogas; para barrar o uso de maconha em locais públicos; e para considerar o porte como de natureza administrativa.
O tribunal analisou o crime previsto no artigo 28 da Lei de Drogas, que fixa penas para quem “adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização”. A discussão é feita no julgamento do Recurso Extraordinário 635.659.
Em tese, as penas previstas na norma não levariam à prisão, mas, no máximo, às demais consequências de um processo penal. Na prática, no entanto, a falta de distinção faz com que, em diversos casos, usuários sejam classificados como traficantes, ficando sujeitos a penas privativas de liberdade.
Voto do relator
Gilmar apresentou seu voto em agosto de 2015. Para ele, “a criminalização da posse de drogas para uso pessoal conduz à ofensa à privacidade e à intimidade do usuário. Está-se a desrespeitar a decisão da pessoa de colocar em risco a própria saúde”.
O voto do relator se baseia no argumento da Defensoria Pública de São Paulo, autora do recurso julgado. A alegação dos defensores paulistas é que o artigo 28 da Lei de Drogas é inconstitucional por violar o direito fundamental à intimidade e à privacidade.
Eles também afirmam que criminalizar o uso de drogas viola o princípio da lesividade, segundo o qual só podem ser consideradas criminosas as condutas que afetem bens jurídicos de terceiros ou coletivos.
De acordo com o relator, o direito de personalidade “não está limitado a determinados domínios da vida”. Ele se aplica, segundo o ministro, “a diferentes modos de desenvolvimento do sujeito, como o direito à autodeterminação, à autopreservação e à autoapresentação”.
“Nossa Constituição consagra a dignidade da pessoa humana e o direito à privacidade, à intimidade, à honra e à imagem. Deles pode-se extrair o direito ao livre desenvolvimento da personalidade e à autodeterminação”, sustentou Gilmar.
Depois do voto do relator, os ministros Barroso e Fachin votaram pela descriminalização do porte de maconha, ainda em 2015. O caso, então, foi paralisado por pedido de vista do ministro Teori Zavascki, morto em acidente de avião em 2017.
O julgamento foi retomado em 2 de agosto de 2023, com o voto-vista de Alexandre, que propôs a fixação de parâmetros objetivos para diferenciar usuários de maconha e traficantes. De lá para cá, também houve paralisação em duas ocasiões, em que pediram vista os ministros André Mendonça e Dias Toffoli.
Voto de Alexandre de Moraes
Alexandre apresentou um denso voto, baseado principalmente em estudo feito pela Associação Brasileira de Jurimetria. O levantamento conclui, por exemplo, que jovens, negros e analfabetos são considerados traficantes com maior frequência, mesmo quando presos com quantidade de droga inferior à apreendida com pessoas acima dos 30 anos, brancas e com ensino superior.
Pessoas analfabetas, por exemplo, são consideradas traficantes quando presas com uma média de 32 gramas de maconha, enquanto a média para pessoas com ensino superior é de 49 gramas, de acordo com a pesquisa.
Alexandre também destacou que a falta de parâmetros claros para diferenciar usuários e traficantes levou a uma discricionaridade “exagerada” das autoridades policiais, do Ministério Público e do Judiciário.
“Triplicou-se em seis anos o número de presos por tráfico de drogas, mas não triplicamos o número de presos brancos, com mais de 30 anos e ensino superior, e, sim, o de pretos e pardos sem instrução e jovens. É preciso garantir a aplicação isonômica da Lei de Drogas para evitar que, em virtude de nível de instrução, idade, condição econômica e cor da pele, você possa portar mais ou menos maconha”, disse o ministro.
Para Alexandre, a quantidade é um critério importante, mas não o único. De acordo com o ministro, outros pontos devem ser considerados na hora de diferenciar o usuário do traficante, como as condições observadas no momento da prisão (se a pessoa foi pega vendendo) ou se itens como balança e cadernos de anotação indicam que o abordado é traficante, entre outros.
Segundo o ministro, a quantidade, nos casos envolvendo pouca droga, cria apenas uma “presunção relativa”, não servindo, sozinha, para qualificar tráfico ou uso.
“Em muitos flagrantes, os únicos elementos descritivos são a quantidade e o testemunho da autoridade policial. É preciso que isso seja mais bem trabalhado e que se analisem outros fatos, como a apreensão de instrumentos como celulares e balanças e as circunstâncias de apreensão.”
O ministro propôs a seguinte tese de repercussão geral:
1) Não tipifica o crime previsto no artigo 28 da Lei 11.343/2006 a conduta de adquirir, guardar, ter em depósito, transportar ou trazer consigo, para consumo pessoal, a substância entorpecente maconha, mesmo sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar;
2) Nos termos do parágrafo 2º do artigo 28 da Lei 11.343/2006, será presumido usuário aquele que adquirir guardar, ter em depósito, transportar ou trazer consigo de 25 a 60 gramas de maconha ou seis plantas fêmeas;
3) A presunção do item anterior é relativa, não estando a autoridade policial e seus agentes impedidos de realizar a prisão em flagrante por tráfico de drogas quando a quantidade de maconha for inferior à prevista no item 2, desde que, de maneira fundamentada, comprove a presença de outros critérios caracterizadores do tráfico de entorpecentes;
4) Nas hipóteses de prisão em flagrante por quantidades inferiores à fixada no item 2, para afastar a presunção relativa na audiência de custódia a autoridade judicial, de maneira fundamentada, deverá justificar a conversão da prisão em flagrante em prisão preventiva e a manutenção da persecução penal apontando obrigatoriamente outros critérios caracterizadores do tráfico de entorpecentes, tais como a forma de acondicionamento, a diversidade de entorpecentes, a apreensão de outros instrumentos, como balanças, cadernos de anotação, celulares com contato de compra e venda, locais e circunstâncias de apreensão, entre outras características que possam auxiliar na tipificação do tráfico;
5) Nas hipóteses de prisão em flagrante por quantidades superiores às fixadas no item 2, na audiência de custódia, a autoridade judicial deverá permitir ao suspeito a comprovação de tratar-se de usuário.
Divergência
Zanin abriu a divergência. Para ele, o artigo 28 da Lei de Drogas é o único dispositivo existente na legislação brasileira que diferencia usuários e traficantes. Assim, não é possível declarar a inconstitucionalidade do trecho.
Ele, no entanto, defendeu a diferenciação e propôs a fixação de tese no sentido de que deve ser considerado usuário aquele que porta até 25 gramas de maconha, ou seis plantas fêmeas. Para Zanin, a proposta deve valer como parâmetro adicional, mantidos os critérios já existentes na Lei de Drogas.
“A mera descriminalização do porte de drogas para consumo apresenta problemas jurídicos e pode agravar a situação que enfrentamos na problemática do combate às drogas, que é dever constitucional. Não tenho dúvida de que os usuários são vítimas do tráfico e das organizações criminosas ligadas à exploração ilícita dessas substâncias, mas se o Estado tem o dever de zelar por todos, a descriminalização poderá contribuir ainda mais para esse problema de saúde”, afirmou Zanin.
Ainda segundo ele, embora a legislação brasileira sobre drogas precise “evoluir”, não é possível declarar a inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas. “Como já expus, esse é o único parâmetro relativamente objetivo para diferenciar a situação do usuário da do traficante.”
Zanin propôs a fixação da seguinte tese de repercussão geral:
1) É constitucional o artigo 28 da Lei 11.343;
2) Para além dos critérios estabelecidos no parágrafo 2º do artigo 28 da Lei 11.343 para diferenciar o usuário de maconha do traficante, o tribunal fixa, como parâmetro adicional, a quantia de 25 gramas ou seis plantas fêmeas para configuração de usuário da substância, com a possibilidade de reclassificação para tráfico mediante fundamentação exauriente das autoridades.
André Mendonça seguiu Zanin, mas entendeu que o Congresso é que deve decidir, em até 180 dias, qual quantidade deve ser considerada tráfico e qual deve ser considerada para uso próprio.
Antes dessa definição legislativa, o ministro propôs que deve ser presumido como usuário quem porta até dez gramas de maconha.
“Entendo que a questão da descriminalização é uma tarefa do legislador. Na prática, estaríamos liberando o uso (se a corte decidisse pela descriminalização).”
Já Nunes Marques acompanhou Zanin quanto à definição de 25 gramas para que uma pessoa seja enquadrada como usuária.
Segundo o ministro, “para além de interferência desproporcional do Poder Judiciário” no Legislativo, a descriminalização poderia “potencializar o tráfico”.
Toffoli abriu uma terceira via que, no entanto, vai no sentido da descriminalização. Ele entendeu que o artigo 28 da Lei de Drogas é constitucional. Mas, segundo o ministro, as sanções aplicadas aos usuários já não são de natureza criminal, e sim administrativa.
Assim, não haveria crime no consumo de nenhuma droga desde que a lei passou a vigorar. Além disso, fez um “apelo” para que o Legislativo, em conjunto com o Executivo e com órgãos competentes, como a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, defina a quantidade de droga que diferencia usuários e traficantes.
Ao votar na semana passada, o ministro disse que seu voto não era pela descriminalização, o que foi reafirmado ao final de sessão. Na ocasião, disse que seu voto não deveria ser levado em conta para formação da maioria e era uma terceira alternativa.
Nesta terça, no entanto, ele fez uma complementação, afirmando que seu posicionamento é pela descriminalização do consumo de todas as drogas. Segundo ele, esse era o objetivo da Lei de Drogas desde que a norma passou a valer.
Fonte: Consultor Jurídico
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