Campo Grande/MS, 12 de novembro de 2024.
O uso de inteligência artificial (IA), por si só, não elimina o risco de utilização indevida de direitos de terceiros, pelo contrário, o agrava. Essa ponderação fundamentou decisão da 6ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo ao anular sentença que julgou improcedente ação ajuizada por um dublador profissional pelo suposto uso de sua voz em campanha publicitária de um shopping da capital.
“A questão dos autos remete a um pressuposto comumente assumido, sem tanta reflexão, de que a inteligência artificial seria capaz de produzir automaticamente respostas (obras, imagens, voz etc.) totalmente ‘novas’”, observou o desembargador Costa Netto, relator da apelação. Pelo seu voto, a sentença deve ser anulada para que o juízo de primeiro grau possibilite às partes discutir, por meio das provas, como foi gerada a voz da campanha.
Com trabalhos no Brasil e em outros países, o autor narrou na inicial que o shopping, sem a sua autorização, utilizou a sua voz na campanha de marketing, que foi veiculada em canal de YouTube. Por esse motivo, ele requereu o ressarcimento por danos materiais, pelos benefícios que deixou auferir caso não tivesse ocorrido a violação, além de indenização por dano moral.
Segundo o requerido, o autor não comprovou os fatos constitutivos do direito que alegou, porque a voz utilizada na campanha não lhe pertence. De acordo com o shopping, a voz é produto de inteligência artificial (PIA), produzida artificialmente pela Microsoft com a conversão de texto em fala sintética semelhante à humana, sendo disponibilizada para o uso público.
Para o juiz Caramuru Afonso Francisco, da 18ª Vara Cível de São Paulo, ficou comprovada a não utilização da voz do dublador, por ter sido ela gerada por IA. “Afasta-se a suposição de que a voz utilizada no vídeo é copiada do autor, visto que demonstrado que fora produzida de forma sintética, em recurso disponível gratuitamente para qualquer usuário”.
Cerceamento de defesa
O apelante sustentou no recurso que houve cerceamento de defesa, por não ter sido permitido comparar a sua voz com a usada pelo réu na campanha publicitária. Como prova do alegado, disse que juntou aos autos ata notarial que atesta a semelhança das vozes. No entanto, essa prova sequer chegou a ser apreciada pelo juiz, razão pela qual deve ser anulada a sentença ou, alternativamente, ser julgada procedente a demanda.
De acordo com o relator, a ausência de responsabilidade do réu não decorre do uso de PIA, devendo a sentença ser anulada por cerceamento de defesa e ocorrer os devidos saneamento e instrução. “A IA pode ser instrumentalizada para fins equívocos. Pela sua incapacidade de julgamento moral ou estético, os riscos de plágio e outros tipos de violação a direitos pelo manejo malicioso ou pouco cuidadoso da IA são consideráveis”.
Conforme Costa Netto, não se pode excluir a possibilidade de que, ao usar voz gerada por um software, tenha a ré infringido o dever de cuidado quanto à utilização de PIA, sendo nessa hipótese responsável pelos danos gerados. “Para determinar tal responsabilidade, porém, é necessário maior aprofundamento cognitivo, de forma a produzir estudos sobre a similaridade entre a voz utilizada na campanha publicitária e a voz do dublador”.
Os desembargadores Ramon Mateo Júnior e Débora Brandão seguiram o relator. Sobre a possibilidade de plágio, o acórdão mencionou que a Autoridade de Concorrência da França multou a Google, em março de 2024, em 250 milhões de euros (cerca de R$ 1,3 bilhão), por descumprir acordo anterior, pelo qual se comprometia a respeitar direitos conexos, principalmente matérias jornalísticas, ao alimentar suas ferramentas de IA.
Processo 1119021-41.2023.8.26.0100