Os tortuosos caminhos da Justiça

Carlos José Reis de Almeida

(Advogado)

Aos doze anos de idade Maria não se conformava com o que via ao seu redor. O pai se dizia doente e não trabalhava. A mãe lutava com dificuldades para arranjar dinheiro e comida para os filhos. Maria não gostava de ir à escola, preferia matar aula e perambular na companhia de amigas. Certo dia exibiu à mãe notas de dinheiro dizendo ter vendido frutas roubadas do vizinho. Pressionada, confessou que havia se insinuado para alguém na rua e o sujeito lhe teria dado o dinheiro após passar a mão em suas partes íntimas. A mãe guardou o dinheiro e foi até a Delegacia de Polícia onde a menor apontou José como autor do fato. Preso, o acusado foi condenado por atentado ao pudor.

Algum tempo depois Maria foi encontrada por policiais na casa de João, onde ela assistia a um filme pornográfico ao lado de outras adolescentes. A investigação mostrou que João costumava promover festas com prostitutas no local e ele acabou condenado a uma longa pena de prisão.

Menos de um ano depois Maria e suas amigas contaram à autoridade policial que frequentavam a casa do Velho. O Velho morava sozinho e Maria descobriu que se lhe fizesse alguns agrados sexuais receberia pequenos presentes e uns trocados. A cada vez que retornava levava consigo outras amigas, que se revezavam na tentativa de agradar o Velho. Mas de nada adiantava – contou aos policiais – o Velho era impotente.

Aos catorze anos Maria agia com a desenvoltura de uma pessoa adulta, mas não conseguia ocultar da mãe os visíveis sinais do dinheiro que ganhava arregimentando o grupo de pequenas adolescentes nessas empreitadas. O Velho era apenas um dos “clientes” do grupo. Como nas vezes anteriores a mãe denunciou o fato às autoridades e o Velho também foi preso e condenado.

Estes fatos se foram repetindo na vida de Maria e a falibilidade da natureza humana granjeou-lhe muitas oportunidades de praticar favores sexuais em troca de dinheiro e presentes, arrastando consigo suas companheiras de menoridade e infortúnio. O Poder Judiciário deu atenção apenas aos autores dos fatos, todos condenados e mandados à prisão. Maria era apenas mais um nome inserido na relação das testemunhas de acusação, uma vítima constante, frequentadora contumaz tanto do habitat dos pedófilos quanto dos gabinetes das autoridades e a quem se dava atenção até o momento em que prestava depoimento em Juízo. Depois disso, não interessava a mais ninguém.

Quando alcançou dezesseis anos saiu de casa dizendo que já tinha condições de cuidar da própria vida. Foi morar com uns amigos com quem também dividia o produto de pequenos furtos, de outros favores sexuais e da venda de drogas. Arrumou um namorado e o convidou para dividirem a cama e alguns cigarros de maconha. Quando a polícia invadiu a casa Maria não hesitou em apontá-lo como o único dono de todo o entorpecente encontrado, protegendo os demais parceiros. A fotografia do namorado algemado estampou as manchetes, apontado como grande traficante de drogas retirado de circulação pela atuação diligente das autoridades. De Maria não se deu qualquer notícia.

José cumpriu pena por três anos e saiu da cadeia para tentar reencontrar o rumo. Seu erro lhe custou o convívio da família, jamais recuperado. Muitas vezes o único ouvinte de seu desabafo de arrependimento e pranto foi o seu advogado. Faleceu num acidente automobilístico pouco tempo depois, ainda lamentando o distanciamento da família e dos amigos. Ao deixar a prisão João descobriu que sua casa havia sido invadida, depenada e quase destruída. Mudou-se para longe, mas não conseguiu se apartar do pesado fardo que os anos de cárcere lhe colocaram sobre as costas. Testemunhas contam que sua morte – seu veículo bateu de frente com uma carreta – não foi acidental. Depois de um ano de prisão um recurso conseguiu convencer o Tribunal de Justiça de que Maria e suas amigas não eram tão vítimas assim, e o Velho foi absolvido e solto. O namorado, depois de quatro meses preso acabou obtendo o direito de cumprir o restante da pena em liberdade.

Não se pretende aqui defender ou transformar estes condenados em vítimas. Quem erra deve pagar pelos seus erros. Mas estas situações servem para mostrar que é possível combater o crime atuando em outras áreas. Tivesse Maria recebido atenção e cuidados necessários logo depois do primeiro fato, os outros crimes poderiam ter sido evitados, assim como a sua própria degradação pessoal.

Edmundo Oliveira, num estudo sobre vitimologia e Direito Penal afirma existir uma “inquestionável possibilidade de identificação de indivíduos portadores de características que são associadas a certos padrões de conduta, de comportamento e de atividades humanas, apropriadas a conduzir tanto ao crime como à vitimização”. O Estado atendeu a cada um dos casos narrados, mas dirigiu sua atenção exclusivamente para punir os culpados. Tivesse agido de forma responsável e eficaz em relação à situação pessoal da vítima, os outros crimes não teriam acontecido. Assim como a vítima destes acontecimentos – dos quais apenas os nomes dos personagens são fictícios – muitas Marias existem por aí, continuadamente negligenciadas pelos desajustes estatais e pela inabilidade da própria natureza humana.

No livro chamado “O Apóstolo”, Sholem Asch narra uma passagem em que Saulo pergunta a Rabban Gamaliel sobre como trilhar o caminho da justiça. O mestre ensina:

– Que é a justiça dos homens, meu discípulo? Está escrito: ‘Só Deus é reto em todos os seus caminhos’. A justiça dos homens é uma espécie de vestimenta curta, que lhe cobre as coxas, deixando-lhes as pernas nuas. Essa justiça é unilateral. ‘Deus procura os corações dos homens’. Só o coração pode guiar-nos no verdadeiro caminho, servindo-nos de olhos em nossa escuridão.

Saulo questiona o mestre:

– Se assim é, meu rabi, por que Deus nos deu leis e mandamentos? Se o principal guia deve ser o coração, por que não seguir o coração somente?

E o mestre elucida as dúvidas de seu pupilo:

As leis e mandamentos nos foram dados para nosso benefício, para ajudar-nos a buscar o caminho verdadeiro. Pois o homem se assemelha às outras criaturas da terra – sua íntima inclinação é para o mal. Mas Deus o favorece com a sua graça, criando-se à sua imagem e incutindo-lhe com seu sopro uma centelha de si próprio, de sua alma pura, para que o homem se pudesse enobrecer, elevando-se da condição dos animais aos mundos mais elevados do céu e da divindade. Em seu caminho ele colocou marcos nas formas de leis e mandamentos. Mas o principal não são as leis e mandamentos. Somos nós! Os mandamentos e leis foram criados para nós e não nós para eles!