Tenho me posicionado incansavelmente, tanto em sala de aula, como em palestras e votos que profiro nos julgamentos de que participo no Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul, sobre a necessidade de melhor análise e reflexão em relação aos casos envolvendo acidentes de trânsito com vítimas, fatais ou não, em que, frequentemente, se imputa ao pretenso responsável pela ocorrência, ter agido com dolo eventual.
Em razão de tal imputação, os denunciados acabam sendo, amiúde, processados e julgados perante uma Vara do Tribunal do Júri, terminando por serem expostos ao corpo de juízes leigos para receberem um veredito sobre suas condutas. Os acusados são então avaliados pelo Júri Popular, em razão dos crimes, em tese praticados, contra a vida, consumados ou não, e demais consequências do fato, atraídas pela competência.
Aos jurados, em sua quase totalidade, inscientes das ciências do Direito, restam as responsabilidades de analisar não só os aspectos externos da ação ou ações do acusado, mas também as circunstâncias jurídicas do fato.
Resta então o drama! Como se exigir de pessoas leigas o perscrutamento sobre a dificílima questão que envolve as controvérsias sobre o dolo eventual?
Trata-se de uma tragédia anunciada. O raciocínio leigo, baseado no senso comum, é compreensivelmente incapaz de alcançar as categorias do Direito e os princípios e métodos da hermenêutica jurídica, mormente envolvendo situações de alta complexidade, como se da na cognição sobre o dolo eventual e sua confinante, a culpa.
Na prática, em sua grande maioria, as acusações de crimes ao volante, com indicação na denúncia de ter o acusado (a) agido com dolo eventual, se restringe às hipóteses de “alta velocidade”, “embriagues ao volante” e“ descumprimento de regras de trânsito”, nesta ordem, cumulativas ou não.
No entanto, é preciso chamar a atenção sobre a incoerência de se tentar continuar consagrando o Direito penal na forma de um sistema de normas de aplicação uniforme às situações e contextos da vida, através de teorias e métodos supostamente neutros.
Na atual sociedade de risco, o Direito penal, além de dever ser estudado e aplicado como um sistema cultural que acrescenta valores a seus institutos dogmáticos, não pode ficar acoplado a bases ontológicas (ação, causalidade, estrutura lógico-reais), mas deve sim voltar-se para as suas finalidades, de proteção de bens jurídicos através da correta utilização da pena, tanto na sua destinação de prevenção geral (operando sobre a sociedade genericamente) como na de prevenção especial (atuando sobre o autor do delito).
A pena retributiva, considerada exclusivamente como castigo, aplicada simplesmente em razão do descumprimento de uma norma, em nada contribui para a segurança social ou para a verdadeira expectativa de justiça, criando apenas uma falsa sensação de resposta ao delito através de uma “vingança” proporcionada pelo Estado. Trata-se da banalização do Direito penal.
Todas essas observações servem, enfim, para afirmar com certa tranquilidade, descaber a pronúncia do acusado pelos crimes de homicídio e tentativa de homicídio com base em suposto dolo eventual na sua conduta, levando-se em consideração para tanto, puros critérios de responsabilidade objetiva, tais como: “dirigir veículo em velocidade incompatível”, ou “após ter ingerido bebida alcoólica”, ou ainda, “com desatenção a normas de trânsito”, desconsiderando o elemento volitivo, indispensável ao dolo, em qualquer das suas modalidades.
Na sábia lição de Claus Roxin[1], considerado o maior penalista do mundo da atualidade, existe um critério diretriz, com capacidade de distinguir o “dolo eventual” da “imprudência consciente” (denominação da culpa consciente no direito europeu). Para o festejado autor, no dolo há sempre a realização de um plano, enquanto na imprudência consciente existe apenas “negligência ou ligeireza”. Isto quer dizer que, quando se atua de maneira descuidada ou irreflexiva, está-se diante da “imprudência consciente”. Já na hipótese de se arriscar conscientemente, incluindo no cálculo o resultado – p.ex. a eventual morte ou lesão da vítima – isso faz parte integrante de um plano, e nessa medida, o efeito foi “querido”, caracterizando o dolo eventual.
Segundo ainda Roxin[2], quando alguém, apesar da advertência de sua acompanhante, dirige de maneira arriscada e provoca um acidente, este acidente não terá sido causado dolosamente, senão apenas por imprudência consciente, ainda que o agente conhecesse as possíveis consequências e tivesse sido advertido sobre elas. Para Roxin, a diferença radica em que o condutor em tal situação, em que pese sua consciência do risco, confia que o resultado não ocorrerá, pois do contrário desistiria da sua atuação, já que ele mesmo seria a primeira vítima da sua conduta. Essa confiança em um final feliz, que é mais do que uma débil esperança, não permite chegar a uma decisão contra o bem jurídico protegido. Dessa forma, continua Claus Roxin[3], sem dúvida se pode reprovar o sujeito
por sua descuidada negligência ou ligeireza e apená-lo por isso, porém como ele não tomou decisão alguma contra os valores jurídicos tipicamente protegidos (como a vida, a integridade física, a propriedade alheia), a reprovação deve ser mais atenuada, merecendo somente a pena da imprudência.
Outro não é o entendimento de Santiago Mir Puig, memorável Catedrático de Direito Penal da Universidade de Barcelona, Espanha, que ao tratar do dolo eventual expressamente afirma[1]: “Mi opinión es la seguinte; el dolo exige conocimiento de la concreta capacidade de la conducta para producir el resultado típico fuera del marco del riesgo permitido.” (destaques no original).
Ora, considerando as duas lições, de Roxin e Mir Puig, quem tem conhecimento sobre a concreta capacidade de seu ato levar a um grave acidente, onde ele próprio pode ser a maior vítima, certamente não continuará com a conduta se não acreditar que possa evitar o resultado, ou ser ele de baixa probabilidade.
Pode-se afirmar, com certa segurança, só existir dolo eventual quando o agente reconhece a produção do resultado típico como possível e não muito remota, e a aprova. O elemento volitivo tem, necessariamente, que estar presente em qualquer espécie de dolo, pois sem vontade não há tipicidade dolosa.
O empenho de alguns doutrinadores e mesmo julgadores desavisados, que tentam suprimir o elemento volitivo para concluírem sobre a presença ou não do dolo eventual, não se sustenta frente a realidade.
O esquematismo objetivista, que tem sido frequentemente utilizado para concluir pela presença do dolo eventual, tende a provocar sérias injustiças, pois não é porque alguém dirigiu após ingerir bebida alcoólica, imprimiu velocidade incompatível em seu veículo, ou desrespeitou norma de trânsito, e produziu um resultado danoso nestas condições, que agiu com dolo eventual.
Mesmo que em tais circunstâncias, reste demostrada a relação de causalidade, sempre faltará algo mais, que é exatamente a determinação da culpabilidade, pois existe sempre uma diferença de culpabilidade entre dolo e as manifestações da culpa em sentido estrito.
Não se pode, também por esse motivo, perder de vista, existir uma relação de gradação normativa entre os dois conceitos, ainda que juridicamente as ideias se repilam, sendo a culpa, bem menos grave que o dolo.
Bem por isso, como não é incomum existir, nos casos concretos, dúvida se alguém atuou com dolo eventual ou culpa consciente, já que a conclusão depende quase que exclusivamente da atuação interna do indivíduo na produção do resultado, deve-se lançar mão do princípio “in dubio pro reo”, com imputação do crime menos grave, o que raramente se vê ocorrer na prática. E não acontece porque, asnaticamente, como já mencionado, lança-se mão, exclusivamente, de critérios objetivos para se concluir sobre a ocorrência do dolo eventual, desprezando equivocadamente a análise do elemento volitivo sempre existente na ação.
Por vezes, analisando algumas denúncias e decisões, país afora, a respeito do tema aqui tratado, fica-se com a impressão de que foram confeccionadas por pessoas dotadas de superpoderes, com capacidade de entrar na mente humana e analisar suas intenções, sem qualquer indicação externa, antecedentes ou circunstâncias, que levem à conclusão da motivação do agir de forma dolosa do imputado.
Particularmente em relação à questão de acidente no trânsito com morte, quando o condutor causador estiver comprovadamente sob influência de bebida alcoólica, legislação mais ou menos recente, apontou, de forma expressa, que o fato deve ser apreciado como uma forma qualificada do homicídio culposo. Salvo, obviamente, as exceções devidamente fundamentadas.
Diz a Lei n. 13.546/2017 que acrescentou o §3º ao artigo 302 do CTB, que trata de homicídio culposo na direção de veículo automotor:
“Art. 302. Praticar homicídio culposo na direção de veículo automotor.
§3º Se o agente conduz o veículo automotor sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência:
Penas – reclusão, de cinco a oito anos, e suspensão ou proibição do direito de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.”
A Corte de Justiça de Mato Grosso do Sul já apreciou situação em tal sentido, decidindo que “o homicídio ocorrido no trânsito (forma culposa) previsto no artigo 302, caput, do Código de Trânsito Brasileiro deve prevalece em relação ao homicídio previsto no artigo 121, do Código Penal (forma dolosa) ainda que comprovada a embriaguez alcoólica, pois segundo precedente do STF ‘a embriaguez alcoólica que conduz à responsabilização a título doloso é apenas a preordenada, comprovando-se que o agente se embebedou para praticar o ilícito ou assumir o risco de produzi-lo’. Logo, ‘o homicídio na forma culposa na direção de veículo automotor (art. 302, caput, do CTB) prevalece se a capitulação atribuída ao fato como homicídio doloso decorre de mera presunção ante a embriaguez alcoólica eventual’. Recurso provido para desclassificar a conduta imputada ao recorrente
para homicídio culposo na direção de veículo automotor (art. 302, caput, do CTB), determinando a remessa dos autos para uma das Vara Criminais Residuais da Comarca de Campo Grande” (TJMS, 2ª Câmara Criminal, RESE n. 0040070-71.2008.8.12.0001, Rel. Des. Romero Osme Dias Lopes, j. 28.1.2013).
Em caso aproximado, o Superior Tribunal de Justiça se posicionou no mesmo sentido:
PENAL. PROCESSO PENAL. PRONÚNCIA. FILTRO PROCESSUAL. PROCEDIMENTO DO JÚRI. HOMICÍDIO NA DIREÇÃO DE VEÍCULO APÓS SUPOSTA INGESTÃO DE BEBIDA ALCOÓLICA. AUSÊNCIA DE DISPOSITIVO DE LEI FEDERAL VIOLADO. ART. 415, II, DO CPP. FUNDAMENTAÇÃO DEFICIENTE. SÚMULA N. 284 DO STF. EXCESSO DE LINGUAGEM. AUSÊNCIA. OMISSÕES E OBSCURIDADES. INEXISTÊNCIA DE VÍCIO. DOLO EVENTUAL. EMBRIAGUEZ. AUSÊNCIA DE CIRCUNSTÂNCIAS EXCEDENTES AO TIPO. DESCLASSIFICAÇÃO. HOMICÍDIO CULPOSO. RECURSO ESPECIAL PARCIALMENTE CONHECIDO E, NESSA EXTENSÃO, PROVIDO.
(…)
6. A embriaguez do agente condutor do automóvel, sem o acréscimo de outras peculiaridades que ultrapassem a violação do dever de cuidado objetivo, inerente ao tipo culposo, não pode servir de premissa bastante para a afirmação do dolo eventual. Conquanto tal circunstância contribua para a análise do elemento anímico que move o agente, não se ajusta ao melhor direito presumir o consentimento do agente com o resultado danoso apenas porque, sem outra peculiaridade excedente ao seu agir ilícito, estaria sob efeito de bebida alcoólica ao colidir seu veículo contra o automóvel conduzido pela vítima (STJ, 6ª Turma, REsp 1.689.173/SC, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, j. 21/11/2017).
Mas, apesar da alteração legislativa, e em que pese as decisões em sentido diverso, persiste a insistência em se tratar o assunto de maneira diversa, com utilização de presunção “in malan partem”, de ter o réu agido com dolo eventual, confrontando com o princípio da não-culpabilidade esculpido no art.5º, LVII da Constituição Federal brasileira.
A reflexão posta acima, com relação ao acidente provocado por condutor sob efeito de bebida alcoólica, ajusta-se também às demais situações já indicadas anteriormente, quando no processo se apresenta a questão do dolo eventual.
O que se pode concluir é que, o tema, dolo eventual, não vem recebendo dos aplicadores do Direito a devida atenção, especialmente nos delitos de trânsito, sendo cotidianamente aposto com escoras em conceitos objetivos e vazios, quando deveria ser orientado pelo seu conteúdo material, com particular zelo pelo elemento volitivo que o sustenta.
[1] Derecho Penal, Parte General, Tomo I, p.425, tradução ao espanhol: Diego-Manuel Luzón Peña, Madrid: Editorial Civitas, 2001.
[2] Idem, p.425
[3] Ob.cit, p.426
[4] Derecho Penal, Parte General, p.208, Buenos Aires: IBdef, 2004.
Ruy Celso Barbosa Florense
Desembargador da 2ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul
Mestre e Doutor em Direito pela PUC/SP
Especialista em Criminologia pela PUC Campinas;
Professor e Coordenador dos Cursos de Graduação e Pós-graduação em Direito na INSTED em Campo Grande/MS;
Professor convidado da Universidade de Girona Espanha para o Master em Processo Penal e Garantismo;
Ex-membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciaria (CNPCP); e
Membro e parecerista do IBCCRIM e de diversas outras revistas jurídicas do Brasil