Judiciário pode julgar calote de igreja em ‘remuneração’ de pastor, diz STJ

Campo Grande, 30 de abril de 2024
Igreja se comprometeu ao pagamento vitalício, mas deixou de fazê-lo após 20 anos

Se a remuneração acertada entre igreja e pastor tiver caráter contratual, a falta de seu pagamento pode ser julgada pelo Poder Judiciário sem que isso implique indevida ingerência no funcionamento de organização religiosa.

Com esse entendimento, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça negou provimento a um recurso especial da Assembleia de Deus, que foi condenada a ressarcir o filho de um falecido pastor que ficou sem receber em seus últimos anos de vida.

A controvérsia trata do pagamento da chamada côngrua, ou prebenda: uma verba de caráter alimentar que uma organização religiosa paga a seus ministros com a finalidade de prover seu sustento.

A côngrua é uma liberalidade da igreja: ela não é obrigatória, nem equivale a salário porque não depende do volume de trabalho exercido no sacerdócio.Côngrua de jubilação

No caso julgado, a igreja fixou a “côngrua de jubilação” — ela se comprometeu a pagar o valor de forma vitalícia a um pastor colocado na inatividade, com previsão estatutária e registro formal do ato interno.

O pagamento foi feito por quase 20 anos e cessado em 2015. O pastor morreu em 2018. Na ação, seu filho pediu o pagamento das diferenças devidas nos últimos anos de vida do jubilado. A igreja apontou que não devia nada porque não havia obrigação.

O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro deu razão ao filho do pastor por entender que havia a legítima expectativa do recebimento das verbas. A igreja, então, recorreu ao STJ alegando ingerência do Judiciário em organização religiosa.

Ela sustentou que a obrigação de pagamento tem caráter moral e não equivale a aposentadoria. E que o funcionamento da igreja não pode ser obstaculizado, nem imposta obrigação não prevista em lei.

Pode julgar

Relatora da matéria no STJ, a ministra Nancy Andrighi explicou que o artigo 42, parágrafo 2º, do Código Civil dá às igrejas liberdade de organização e estruturação, proibindo que o poder público negue reconhecimento ou registro dos atos necessários ao seu funcionamento.

Com isso, o Estado só pode interferir de forma limitada em excessos praticados no reconhecimento dos atos de funcionamento. Trata-se de controle dos atos praticados pelas entidades em relação à lei.

No caso da côngrua, esse controle só é possível se ela assumir natureza contratual. Isso ocorre apenas quando seu pagamento se tornar obrigatório por meio de ato formal, com respaldo em regras internas da igreja.

Segundo o TJ-RJ, esse é o caso dos autos, conclusão que não pode ser revista pelo STJ porque demandaria reanálise de fatos e provas, medida vedada pela Súmula 7.

“O reconhecimento pelo Poder Judiciário de obrigação (de natureza contratual), assumida por pessoa jurídica de direito privado (igreja evangélica) de pagar verba de natureza alimentar (côngrua) a preposto (pastor) após ato de inativação (jubilamento) previsto em normativo interno (estatuto) e formalizada em ato interno (ata) — com base em regramentos internos e com princípios de direito contratual — não caracteriza interferência indevida do poder público na organização e funcionamento das organizações religiosas”, resumiu a relatora.

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REsp 2.129.680