Campo Grande/MS, 04 de setembro de 2024.
“Me senti muito constrangido; eu estava trabalhando e, de repente, aconteceu isso”.
A frase é de Douglas Luís da Silva Leite, apenado do regime semiaberto que foi novamente preso enquanto trabalhava, após um mandado de prisão ser expedido sob a alegação de que se desviou da rota permitida pela tornozeleira eletrônica.
Entretanto, o próprio Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE) reconheceu, durante a audiência de custódia, que a acusação não era correta e que Douglas estava na área permitida. Mesmo assim, o homem passou quatro dias preso no Centro de Observação e Triagem Professor Everardo Luna (Cotel), em Abreu e Lima, porque não houve o envio da decisão para o Cotel no fim de semana.
A prisão aconteceu no dia 23 de julho, uma sexta-feira, quando Douglas, de 47 anos, estava trabalhando na prefeitura de Abreu e Lima, no Grande Recife, e foi surpreendido quando policiais militares anunciaram um mandado de prisão contra ele, expedido pela 2ª Vara Regional de Execução Penal da Capital. De acordo com o mandado, o Centro de Monitoramento Eletrônico de Pessoas (Cemep) registrou que o reeducando havia desviado a “rota do perímetro autorizado”.
A audiência de custódia aconteceu no sábado (24). Nela, o advogado de Douglas sustentou que não houve desvio de rota, pois o homem estava no local de trabalho e tinha avisado ao Cemep que o aparelho estava com defeito.
De acordo com o TJPE, na mesma audiência, o próprio Cemep expediu outro ofício informando que não houve erro no cumprimento da pena.
“A prisão do autuado foi revogada pelo próprio Juiz da 2ª Vara Regional de Execução Penal da Capital. […] sob o argumento de que o autuado não descumpriu as obrigações constantes da execução penal, ocasião em que foi expedido um contramandado em seu favor, o que torna a manutenção da sua prisão desnecessária e ilegal”, disse a nota do tribunal.
Apesar do erro reconhecido e da soltura decretada após a audiência, pelo juiz Edmilson Cruz Junior, o homem não foi liberado no sábado.
“A resposta que tive do Cotel foi que eles não poderiam fazer nada porque o setor ‘da penal’ não funciona aos domingos. Ou seja, desde a sexta-feira que o estado tinha consciência que a pessoa está presa irregularmente e fez nada”, falou o advogado Humberto Aragão Neto, que acompanha o caso.
Douglas mora no bairro de Muribeca, em Jaboatão dos Guararapes, e foi preso preventivamente em fevereiro de 2020 por tentativa de homicídio. No final do ano passado, ele progrediu de pena e foi colocado no semiaberto, com monitoramento de tornozeleira eletrônica.
Para ele, que levou anos para poder voltar a viver com a esposa e os filhos, um menino de 4 anos e uma menina de 11, ambos autistas, ter voltado para o Cotel trouxe de volta lembranças dos turbulentos anos que passou no local.
“Foi péssimo, só de voltar para cá e ser tratado como bicho. Na espera, eles colocam o comer no chão, isso se tiver comida. Se não tem, você fica com fome”, afirmou.
A soltura dele aconteceu apenas na segunda-feira (26), após três dias sem se comunicar com a família e sem conseguir explicar no trabalho o motivo da ausência.
“Uma pessoa com uma ‘pulseira’ dessa no pé já tem muito estigma. A gente sabe como é difícil para uma pessoa que tem passagem pelo judiciário ser reintegrada na sociedade, conseguir emprego. Graças ao judiciário, o que os patrões dele têm é que ele foi preso enquanto trabalhava. É uma sequência de erros”, disse o advogado Humberto Aragão Neto.
Ainda de acordo com o advogado, existe a possibilidade de processar o estado por danos morais. “Foi uma falta de manejo do estado. O próprio fato dele ter sido preso mesmo com a Justiça reconhecendo o erro e, mesmo assim, ter ficado preso o fim de semana inteiro, sem contar no impacto que pode ter no trabalho dele, é uma humilhação muito grande”, afirmou.
Morosidade da Justiça
O caso de Douglas representa um cenário comum no Brasil. Preso em 2020, o homem passou quatro anos no Cotel até receber uma condenação, em outubro do ano passado. A pena de 9 anos e dois meses de prisão teve quatro anos e oito meses cumprida apenas no período em que ele aguardava o julgamento. O processo se encontra em grau de recurso.
O tempo de Douglas detido foi justificado pela lei da prisão preventiva, que, de acordo com o Código Penal, deve ser revisada por um juiz a cada 90 dias. De acordo com o advogado do apenado, este prazo é costumeiramente desrespeitado.
“No Brasil, a prisão preventiva não possui um prazo fixo determinado por lei. No entanto, ela deve atender aos princípios da proporcionalidade e necessidade”, disse.
Edna Jatobá, coordenadora executiva do Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares (Gajop), explica que a situação enfrentada por Douglas se repete com pequenas diferenças no sistema carcerário brasileiro.
“Mostra o desprezo com a vida dessas pessoas. É como se não interessassem, como se não importasse para o nosso sistema. […] Qual é o estímulo que a pessoa recebe quando está trabalhando e, por um equívoco, ela volta para prisão? Ainda que ela tenha sido retirada depois, cada dia na prisão é uma violência”, analisou Edna Jatobá.
Observando a situação de Douglas Leite, a cientista social relata que o erro pode atrapalhar o processo de ressocialização e reflete sobre questões como descaso e despreparo do sistema prisional.
“O fato da pessoa em semiaberto poder encontrar um emprego, ter o trabalho como reinserção social, ter a retomada dos seus vínculos familiares e comunitários, mesmo com a monitoração eletrônica, ainda existe esse tipo de situação que joga a pessoa para dentro do regime fechado de novo. Por um equívoco inaceitável, elas voltam para dentro do inferno que é o sistema prisional”, apontou.
O que diz o governo
Procurada pelo g1, a Secretaria de Administração Penitenciária e Ressocialização de Pernambuco (Seap) disse que Douglas Leite foi recolhido no Cotel no dia 24 de julho e liberado na segunda (26), no dia de expedição do alvará de soltura. No entanto, de acordo com os autos do processo, o alvará foi dado ainda no sábado (24).
A secretaria também disse que:
- Douglas informou sobre deslocamentos fora do horário previsto, mas que, após análise no sistema, o próprio Centro de Monitoramento Eletrônico de Pessoas (Cemep) constatou que não houve violação e “de imediato informou ao judiciário”;
- as unidades prisionais funcionam em regime de plantão 24 horas;
- a informação de que a tornozeleira eletrônica de Douglas apresentava defeito não confere e que o Cemep não recebeu avisos, reforçando que “não ocorrem problemas técnicos com a tornozeleira eletrônica”.
Fonte: @portalg1