Campo Grande/MS, 28 de maio de 2025.
Por redação.
O site O Garantista teve a honra de entrevistar a Dra. Helena Alice Machado Coelho, juíza de direito titular da 1ª Vara da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher de Campo Grande/MS. Ela também foi responsável pela Coordenadoria Estadual da Mulher do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul no período de janeiro de 2020 a janeiro de 2023.
Helena é mestre em Direitos Humanos pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) e doutoranda em Direito pela Universidade de Gênova, na Itália.
Nesta entrevista, o site O Garantista buscou conhecer mais sobre a trajetória da magistrada, bem como realizar algumas perguntas voltadas ao direito das mulheres, à violência doméstica e às políticas públicas necessárias para o enfrentamento da questão.

O Garantista: O que a motivou a seguir a carreira na magistratura?
Dra. Helena Alice: Sou egressa da primeira turma de Direito da UFMS. Durante a faculdade, tive contato com professores que atuavam como magistrados — pessoas incríveis, algumas das quais tenho o privilégio de conviver até hoje. Então, durante as aulas, além do conteúdo jurídico, eu observava a postura, as histórias que contavam sobre audiências e outras experiências profissionais, e ficava admirada. Penso que esse contato foi fundamental para minha escolha de carreira, ainda durante a graduação. Embora outras carreiras jurídicas sejam interessantes, a magistratura sempre me encantou.
O Garantista: De que forma sua experiência jurídica influenciou sua percepção sobre justiça e equidade?
Dra. Helena Alice: Penso que, quanto mais bem formado é um juiz ou juíza, menor a probabilidade de cometer erros — em todos os assuntos, mas especialmente nas questões mais sensíveis, que envolvem gênero, raça, direitos das minorias etc. Contudo, acredito que a percepção sobre justiça e equidade não é apenas uma questão de ensino formal, mas também algo que aprimoramos com a prática, com o dia a dia no fórum. Trata-se de ter contato com as pessoas e ouvi-las.
O Garantista: Como a senhora avalia a evolução do papel das mulheres no Judiciário ao longo dos anos?
Dra. Helena Alice: A participação feminina no Poder Judiciário vem aumentando. Não só no ingresso na carreira — que, em alguns tribunais, especialmente na Justiça do Trabalho, já é quase paritária em relação aos homens —, mas também nos tribunais superiores. Felizmente, políticas recentes adotadas pelo Conselho Nacional de Justiça, visando à paridade no Judiciário — uma delas baseada em estudo de uma ilustre colega magistrada do nosso estado, Mariana Yoshida —, têm buscado reduzir a diferença gritante entre o número de homens e mulheres nesses tribunais. Essa política representa um avanço enorme, pois, embora as mulheres sejam um pouco mais da metade da população, essa proporção não se reflete nos tribunais (alguns, inclusive, não têm nenhuma mulher no segundo grau). O aumento gradual da participação feminina no Judiciário é uma conquista, mas ainda há um longo caminho a ser percorrido, principalmente nos espaços de decisão.
O Garantista: Como a senhora avalia a efetividade das políticas públicas voltadas à proteção das mulheres vítimas de violência?
Dra. Helena Alice: Temos uma das três melhores leis do mundo no que diz respeito à prevenção e ao enfrentamento da violência doméstica e familiar contra a mulher. A Lei Maria da Penha é uma conquista do movimento feminista e constitui um instrumento fundamental para o combate à violência de gênero. Contudo, acredito que precisamos de políticas públicas mais eficientes, especialmente em nosso estado, que está entre os que mais matam mulheres por razões de gênero no país. Só em 2025, já tivemos 13 feminicídios. Não apenas o Judiciário, mas também — e principalmente — o Executivo precisa intensificar ações para reduzir esses números alarmantes. Campanhas educativas nas escolas, que abordem questões como machismo, misoginia e direitos das pessoas trans, são exemplos de medidas viáveis. Quando pensamos em violência contra a mulher, em violência de gênero, é preciso entender que se trata de uma mudança cultural. O aumento de penas e o encarceramento não são, a meu ver, medidas efetivas. É preciso educar para a igualdade, pois a desigualdade de gênero é uma das grandes causas da violência.
O Garantista: Quais são as principais lacunas existentes na legislação brasileira no que diz respeito ao combate à violência doméstica?
Dra. Helena Alice: Como eu disse, a Lei Maria da Penha é, em si, uma excelente lei — uma das mais avançadas do mundo. Precisamos investir em políticas públicas efetivas e, também, educar nossas crianças com base na igualdade, sem reforçar estereótipos, sem machismos. Não existe “coisa de menino” ou “coisa de menina”, “trabalho de mulher” ou “trabalho de homem”. Tudo isso são construções sociais que levam a relações de poder desiguais e, por consequência, à violência.
O Garantista: O que pode ser feito para assegurar uma maior efetividade na aplicação da Lei Maria da Penha?
Dra. Helena Alice: Penso em algumas possibilidades: educação em direitos humanos nas escolas, desde o ensino fundamental; ampliação do número de delegacias especializadas (DEAMs); ampliação do programa Mulher Segura (PROMUSE), da Polícia Militar; aumento do número de varas de violência doméstica no estado — inclusive na capital — para reduzir o tempo de tramitação dos processos criminais, entre outras medidas.
O Garantista: Quais são os principais desafios enfrentados pelos órgãos responsáveis pela aplicação das medidas protetivas?
Dra. Helena Alice: Nesse ponto, temos um grande desafio, que é fazer com que as mulheres reconheçam (e rompam) um relacionamento tóxico, violento. A violência não é apenas física ou sexual; é também moral, patrimonial e psicológica. Essas três últimas formas são mais sutis — e também mais comuns. Uma vez que a mulher decide denunciar a violência sofrida, a medida protetiva de urgência é concedida, em nosso estado, em tempo inferior a 48 horas, que é o prazo máximo estabelecido pela Lei Maria da Penha. Aqui em MS, muito provavelmente, uma mulher que procure a delegacia para pedir uma medida protetiva terá uma decisão judicial em até 24 horas. É rápido. A questão é que a grande maioria das mulheres que sofrem violência não procura a delegacia para pedir a medida. Mais de 80% das vítimas de feminicídio nunca pediram medida protetiva de urgência. O sistema de justiça simplesmente não sabia que essa mulher sofria violência. Estatisticamente, é possível comprovar que as medidas protetivas são eficazes na proteção da mulher, permitindo que ela consiga romper o ciclo ascendente da violência. A situação da Vanessa, que foi morta mesmo tendo uma medida protetiva, é uma exceção. Uma tragédia, mas ainda assim uma exceção. Em regra, posso afirmar: a medida protetiva salva vidas.