Desembargadora Elizabete Anache cita Alice no país das maravilhas e Zé Ramalho para justificar absolvição em caso de tráfico de ”cogumelos mágicos”

Campo Grande/MS, 15 de abril de 2025.

Por redação.

Desembargadora compara o desafio de distinguir cogumelos comestíveis dos ilícitos com uma reflexão sobre o “mundo de champignon, shitake e cubensis”.

A 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul absolveu G.A da condenação por tráfico de drogas, por entender que a conduta a ele atribuída – envio de cogumelos da espécie Psilocybe cubensis  -não configurava crime. A decisão, unânime, reformou sentença de primeiro grau que havia fixado pena de 6 anos, 9 meses e 20 dias de reclusão em regime semiaberto.

A apelação foi elaborada pelo advogado Fernando Antonio Bomtempo Sobrinho, que sustentou a atipicidade da conduta. Em seu voto, a relatora, desembargadora Elizabete Anache, destacou que os cogumelos enviados não se encontram na lista de plantas proscritas do Anexo I da Portaria SVS/MS nº 344/1998, embora contenham metabólitos secundários – psilocina e psilocibina – que são substâncias psicotrópicas proibidas no Brasil.

 

“Cogumelo do Mário” e o princípio da legalidade

 

Com analogias à literatura e à música popular brasileira – incluindo citações de Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll, e da canção “Amanita” de Zé Ramalho –, a Desembargadora iniciou seu voto com uma abordagem crítica sobre a complexidade do tema. Ressaltou que há cogumelos comestíveis, medicinais e alucinógenos, nem todos contendo substâncias ilegais ou proibidas.

“A questão delineada nos autos foi há muito descrita por Lewis Carrol no clássico da literatura ‘Alice no País das Maravilhas’: […] Até mesmo na música popular brasileira há referências ao tema, pois, como escreveu Zé Ramalho, ‘Neblina turva e brilhante/ Em meu cérebro, coágulos de sol/ Amanita matutina/ transparente cortina ao meu redor’.”, escreveu. E complementou: “Esta pequena introdução sobre o ‘Cogumelos’ é apenas para ilustrar que há cogumelos comestíveis, cogumelos venenosos, cogumelos medicinais, cogumelos alucinógenos, por vezes, com venda proibida, mas que não contêm substância proscrita no Brasil e outros com substância na ‘lista’, sendo que podem ou não ser utilizados para fins religiosos.”

 

Investigação e ausência de dolo

Durante as investigações, a Polícia Federal apreendeu sete encomendas enviadas por G. Em duas delas, com destino a Manaus e a Lagarto (SE), foi detectada a presença das substâncias psilocina e psilocibina. No entanto, a relatora observou que não houve extração ou isolamento dessas substâncias, e tampouco elementos que comprovassem intenção dolosa de traficar entorpecentes.

“G. apenas cultivava os cogumelos e os comercializava in natura, sem realizar qualquer tipo de extração ou processo químico”, afirmou. E complementou: “A conduta atribuída ao apelante não corresponde, de forma clara e objetiva, a nenhum dos verbos descritos no art. 33 da Lei 11.343/2006, pois não há demonstração de que tivesse conhecimento sobre a ilicitude da substância.”

G., que cursou apenas o ensino médio, afirmou desconhecer a ilegalidade do cultivo do fungo in natura. O argumento foi corroborado por laudos periciais e nota técnica juntada aos autos pela defesa.

 

Vazio legal e falha de tipicidade

 

A relatora apontou para um “vazio normativo” quanto à proibição da planta, ou fungo, em si, o que impediria a configuração do delito conforme os princípios da legalidade e da taxatividade penal.

´´Então, não há outra conclusão exceto que o caso revela a atipicidade da conduta por erro de tipo. Não é tolerável que qualquer pessoa seja levada a crer que pode praticar certas condutas e depois ser surpreendida com condenação por crime equiparado a hediondo.”, argumentou. Ela reforçou que o réu “não agiu com dolo de traficar substância entorpecente ou psicotrópica, pois acreditava que o produto não era ilícito. E, na realidade, não era mesmo, em sua forma natural.”

A desembargadora também provocou uma reflexão mais profunda sobre a dificuldade de distinguir entre diferentes tipos de cogumelos comestíveis e aqueles que poderiam ser considerados ilícitos, mencionando:

“Mas como fazer tal distinção do ponto de vista de um homem médio em um mundo de champignon, shitake, shimeji, que vai além do de Lion’s Mane e adentra no cubensis? Por tal razão, adianto que, no meu entender, o caso é de aplicação do art. 20, caput, do Código Penal e absolvição do apelante.”

 

Decisão alinhada com precedentes e realidade social

A decisão se soma a outras recentes que têm considerado o contexto terapêutico e religioso do uso de substâncias psicodélicas naturais. No caso de G., ficou demonstrado que a atividade não se associava ao tráfico tradicional de entorpecentes, tampouco havia elemento volitivo suficiente para caracterizar o crime.

A 1ª Câmara Criminal concluiu pela absolvição com fundamento no artigo 386, inciso III, do Código de Processo Penal, por ausência de dolo e erro de tipo: “Portanto, o caso é de erro de tipo, devido à falsa percepção da realidade em relação aos elementos constitutivos do art. 33,caput, da Lei n. 11.343/2006, considerando legislação dúbia aliada a comércio frequente e rotineiro via internet do cogumelo Psilocybe cubensis.

`Por fim, importante destacar que essa questão dos “cogumelos mágicos” mereceria maior atenção por parte das autoridades públicas, mas não é possível adotar medidas diversas em território nacional, a não ser que haja modificação legislativa´´