De testemunha a réu: violação da garantia constitucional à não autoincriminação

Campo Grande, 02 de Abril de 2024

Por: Renata Borges

O provérbio latino – ainda que adotemos a linguagem simples – merece destaque: nemo tenetur se detegere. Como consequência direta dele, tem-se o direito ao silêncio. A advertência sobre o direito a permanecer calado não é mera repetição de frase, mas forma de validade do ato e pedra angular do sistema de proteção dos direitos individuais, bem como materialização do princípio da dignidade humana.[2]

Ao estudar a dignidade humana, rememora-se que a Constituição estabelece pilares que se apresentam como garantias do Estado de Direito. A real validade desses pilares é o elemento que diferencia as sociedades democráticas dos Estados autoritários ou ainda daquelas democracias que nada mais são do que meras fachadas de poder arbitrário.[3]

Questão atual a ser estudada diz respeito à relativização do direito de não produzir provas contra si mesmo. Situação grave apresenta-se quando em audiência, diante dos fatos narrados, o magistrado não alerta a testemunha de que seu depoimento, em realidade, tornou-se meio de apuração de sua responsabilidade criminal. E, portanto, que poderia ficar em silêncio, pois passou da condição de testemunha à condição de suspeito.

As declarações prestadas pelo acusado, independente da fase judicial, integram o direito de defesa. Assim, só podem ser valoradas se o direito de ser ouvido for respeitado em sua integralidade, considerando a liberdade de decidir o que irá expressar e o direito de permanecer em silêncio.[4] Qualquer forma de coação que elimine a vontade do acusado ou restrinja a liberdade de decidir leva à nulidade absoluta. Portanto, brigando com as garantias do Estado Democrático de Direito, o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça, de que o desrespeito à garantia constitucional do direito ao silêncio configura nulidade relativa, é contrária à visão constitucional que estamos a expor.[5]

A leitura do art. 5º, LXIII, da Constituição, não deve ser literal, como já pontuado pelo STF[6], mas sim ampla a ponto de que o direito de permanecer calado seja uma proteção jurídica integral a qualquer pessoa em confronto com o Estado.[7] Defende-se, inclusive, que em fase pré-processual, quando o depoimento contiver informações passíveis de autoincriminação, a autoridade policial é obrigada a informar o indivíduo sobre o direito de permanecer calado, sob pena de não ser considerada válida a confissão ou qualquer outro comentário subsequente.[8] No mesmo sentido:

Se o indivíduo é convocado para depor como testemunha em uma investigação e, durante o seu depoimento, acaba confessando um crime, essa confissão não é válida se a autoridade que presidia o ato não o advertiu previamente de que ele não era obrigado a produzir prova contra si mesmo, tendo o direito de permanecer calado (STF, Segunda Turma. RHC 122.279/RJ, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 12/8/2014 – Informativo de Jurisprudência 754 do STF).

Não há ilegalidade na decisão da Corte local que absolve os apelantes do delito de posse de arma de fogo com numeração suprimida por entender que houve ofensa à garantia constitucional contra a autoincriminação, uma vez que os acusados não foram informados do respectivo direito de permanecerem em silêncio. Segundo a jurisprudência desta Suprema Corte, a Constituição da República assegura aos indivíduos não apenas o direito ao silêncio, mas também o de ser informado da possibilidade de permanecer calado. A falta de advertência quanto ao direito de nada declarar torna nula a confissão informal realizada no momento da abordagem policial. (STF, RE 1.158.507 AgR. Relator p/ Acórdão: Min. Edson Fachin, Segunda Turma, julgado em 19/06/2023). 

A tentativa de incriminação, direta ou indiretamente, por meio de declarações prestadas sem a ciência do direito de permanecer em silêncio, deve ser considerada nula, independente de qualquer prejuízo no processo. Tal entendimento se afina à correta leitura constitucional do processo penal; significando reconhecê-lo como instrumento de efetivação das garantias constitucionais.[9] Tudo porque o processo penal se construiu historicamente como ferramenta jurídica para, limitando os espaços de atuação, regular o poder punitivo no Estado de Direito.

Referências

BINDER, Alberto M. Derecho Procesal Penal: Fundamentos. 2 ed. Buenos Aires: Editores del Puerto, 2004, p. 563.

BINDER, Alberto M. Introducción al Derecho Penal. 2 ed. atual e ampl. Buenos Aires: AD-HOC, 1999, p. 132.

LOPES JR., Aury. Fundamentos do Processo Penal: Introdução Crítica. 8ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2022, p. 35.

[2] STF. HC 80.949, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, Primeira Turma, julgado em 30/10/2021.

[3] BINDER, Alberto M. Introducción al Derecho Penal. 2 ed. atual e ampl. Buenos Aires: AD-HOC, 1999, p. 132.

[4] BINDER, Alberto M. Derecho Procesal Penal: Fundamentos. 2 ed. Buenos Aires: Editores del Puerto, 2004, p. 563.

[5] A jurisprudência deste Sodalício é firme no sentido de que a ausência de informação quanto ao direito ao silêncio constitui nulidade relativa, dependendo da comprovação de efetivo prejuízo (STJ. AgRg no HC 549.109/PR, Rel. Ministro JORGE MUSSI, Quinta Turma, julgado em 17/12/2019).

[6] “2. Uma dessas limitações, de feição ética, ao poder-dever de investigar a verdade dos fatos é, precisamente, a impossibilidade de obrigar ou induzir o réu a colaborar com sua própria condenação, por meio de declarações ou fornecimento de provas que contribuam para comprovar a acusação que pesa em seu desfavor. Daí por que a Constituição assegura ao preso o “direito de permanecer calado” (art. 5o, LXIII), cuja leitura meramente literal poderia levar à conclusão de que somente o acusado, e mais ainda o preso, é titular do direito a não produzir prova contra si. 3. Na verdade, qualquer pessoa, ao confrontar-se com o Estado em sua atividade persecutória, deve ter a proteção jurídica contra eventual tentativa de induzir-lhe a produção de prova favorável ao interesse punitivo estatal, especialmente se do silêncio puder decorrer responsabilização penal do próprio depoente” (HC 330.559/SC, Rel. Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 25/9/2018, DJe de 10/10/2018).

[7] Destacam-se os artigos 186 e 198 do Código de Processo Penal; o artigo 14, item 3, legra g, do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (Decreto 592/1992) e o artigo 8, item 2, letra g, da Convenção Americana de Direitos Humanos (Decreto 678/1992).

[8] Em sentido contrário: STJ, HC 798225.

[9] LOPES JR., Aury. Fundamentos do Processo Penal: Introdução Crítica. 8ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2022, p. 35.

 

 

Mestranda em Processo Penal pela PUC-SP.

Especialista em Direito Processual Penal e Penal pela PUC-SP e em Direito Penal Econômico pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra em associação ao IBCCRIM.

Graduada em Direito pela UFMS.

Sócia do André Borges Advocacia.

E-mail: renatasborgesn@gmail.com.