Considerações sobre a Lei n. 14.811/24, e o crime de bullying e ciberbullying

Por: Raphael Chaia

No dia 12 de janeiro foi sancionada a Lei n. 14.811, que institui medidas de proteção à criança e ao adolescente contra a violência nos estabelecimentos educacionais ou similares, prevê a Política Nacional de Prevenção e Combate ao Abuso e Exploração Sexual da Criança e do Adolescente, e altera uma série de dispositivos do Código Penal, Estatuto da Criança e do Adolescente, e da Lei de Crimes Hediondos. Celebrada por muitos como a tardia tipificação da conduta de bullying, que até então ainda não era tratada como crime em nosso ordenamento, infelizmente, a emenda saiu pior do que o soneto, e fomos mais uma vez agraciados com um novo dispositivo penal superficial, mal escrito, vago, e potencialmente perigoso em tempos de ativismo judicial tão aflorado.

Vamos começar eliminando os pontos mais simples da lei, que são as mudanças introduzidas nos crimes contra a vida, mais especificamente os artigos 121 e 122 do Código Penal.

No crime de homicídio, não houve grandes mudanças: foi incluída uma nova hipótese de causa de aumento especial de 2/3 para crimes cometidos contra menores de 14 anos, quando este for cometido em instituição de educação básica pública ou privada. Uma resposta direta para casos de violência em escolas, como na tragédia de Suzano (SP), em 2019.

Já no crime de induzimento, instigação ou auxílio a suicídio e automutilação, do artigo 122, criou-se uma nova causa de aumento no novo parágrafo 5º, que estabelece que aplicar-se-á a pena em dobro se o autor do fato for líder, coordenador ou administrador de grupo, de comunidade ou de rede virtual, ou por estes for responsável. Trata-se de uma iniciativa interessante, que, porém, não alcançará as comunidades virtuais na deep web / dark web – e lembrando que o massacre de Suzano foi planejado em um fórum da deep web. É um bom começo, mas pode ter sua aplicação mitigada por questões técnicas, já que seria preciso uma prova material do desempenho da função do autor dentro de tais grupos, que podem desaparecer com o simples clicar de um botão. Quando cometido por meio de computadores, também deverá ser considerado crime hediondo, em razão da inclusão do inciso X no artigo 1º da Lei de Crimes Hediondos, a Lei n. 8.072/90.

O problema pesado, ao nosso ver, está no novo tipo penal que foi criado, previsto no artigo 146-A, o crime de “Intimidação Sistemática”.

Confesso que já li muitos artigos penais mal escritos, e confesso também que há muito tempo deixei de me abalar com essa questão considerando a qualidade dos membros do nosso poder legislativo – e como muitos deles sequer formação jurídica possuem, ou pelos hábitos terríveis de ainda tratarem as questões penais de forma reativa, com projetos de lei apresentados com pouco ou nenhum debate ou técnica legiferante adequada, muitas vezes apenas para saciar a sede do simbolismo penal que traz falsas sensações de segurança e que segue tratando o Direito Penal como uma panaceia mágica para todos os problemas sociais. Porém, esse artigo 146-A do Código Penal se superou, e isso não é um elogio. É talvez um dos mais mal escritos, vagos e superficiais dispositivos que temos hoje em vigor no Código Penal.

Vamos compreender o porquê de tão duras palavras. Assevera o dispositivo:

Intimidação sistemática (bullying)

Art. 146-A. Intimidar sistematicamente, individualmente ou em grupo, mediante violência

física ou psicológica, uma ou mais pessoas, de modo intencional e repetitivo, sem motivação

evidente, por meio de atos de intimidação, de humilhação ou de discriminação, ou de ações verbais,

morais, sexuais, sociais, psicológicas, físicas, materiais ou virtuais:

Pena – multa, se a conduta não constituir crime mais grave.

Intimidação sistemática virtual (cyberbullying)

Parágrafo único. Se a conduta é realizada por meio da rede de computadores, de rede

social, de aplicativos, de jogos on-line ou por qualquer outro meio, ou ambiente digital,

ou transmitida em tempo real:

Pena – reclusão, de 2 (dois) anos a 4 (quatro) anos, e multa, se a conduta não constituir crime mais grave.

Pois bem, primeiro ponto: ao optar pelo uso da expressão “sistematicamente” ao invés de “reiteradamente” – como acontece no artigo 147-A do CP, o crime de perseguição -, o legislador criou uma barreira para a aplicação do dispositivo. É um erro tratar juridicamente as expressões como sinônimas, já que uma conduta reiterada é uma conduta que simplesmente é praticada diversas vezes, e nada mais; porém, quando eu uso a expressão “sistematicamente” para descrever uma conduta, este termo é designado a algo ou alguém que observa ou respeita as regras de um sistema, ou seja, estamos a falar de condutas organizadas, metódicas, cuidadosas e rigorosas. Podemos até mesmo afirmar que trazem consigo um liame subjetivo, o que, na prática, é muitíssimo difícil de ser provado e/ou demonstrado.

Só que aí, na mesma linha em que o legislador usa a expressão “sistematicamente”, ele traz uma repetição desnecessária ao incluir a palavra “repetitivo”, para descrever o modus operandi do autor. Oras, se o ato é sistemático, obviamente que será repetitivo.

Mas já que tocamos no assunto do modus operandi, aqui, outra menção absolutamente desnecessária pode ser observada: o tipo penal estabelece que a conduta deve ser praticada de modo intencional. Como muito bem apontado pelo professor Andre Estefan em suas redes sociais, o dolo é a regra geral, como bem asseverado no artigo 18 do Código Penal. Não existe a necessidade de trazer essa informação, que apenas dificulta a leitura do dispositivo.

Aliás, dentro do núcleo do tipo, também podemos encontrar algumas questões problemáticas não só quanto à forma, mas quanto ao próprio Direito. Ele fala de “intimidar […] por meio de atos de intimidação”. Essa, por si só, merecia um “pasme, excelência”: se a conduta é de intimidação, como seria ela praticada se não por atos intimidatórios? Encontramos ainda uma estranhíssima observação no meio do artigo, que estabelece que a conduta será crime quando a intimidação ocorrer “sem motivação evidente”. Um minuto, existe motivação válida para intimidar alguém sexualmente ou psicologicamente (alguns dos modos como a intimidação se dá segundo o próprio artigo 146-A)?

O pior, porém, ainda estava por vir: entre os modos como a intimidação pode ser praticada, podemos ver, ao final do caput do artigo 146-A, que será considerado bullying também a intimidação sistemática por meio virtual. Só que não faz o menor sentido a palavra “virtual” estar presente no caput, se o parágrafo único do artigo 146-A é inteiro dedicado a uma forma qualificada do crime, quando “por meio da rede de computadores, de rede social, de aplicativos, de jogos on-line ou por qualquer outro meio, ou ambiente digital, ou transmitida em tempo real”.

Entenda o problema: a pena prevista no caput do artigo 146-A é apenas de multa. Enquanto isso, o ciberbullying, previsto no parágrafo único do mesmo artigo 146-A, possui uma pena exponencialmente mais grave – reclusão de 2 a 4 anos, e multa, se a conduta não constituir crime mais grave. Estamos falando de uma conduta mais grave que furto (art. 155), lesão corporal (art. 129), e ameaça (art. 147), só para dar alguns exemplos, e que sequer poderá ser enquadrada como crime de menor potencial ofensivo, uma vez que a pena mínima é superior a um ano (artigo 89 da Lei n. 9.099/95). Duas penas diametralmente opostas no espectro da gravidade das sanções que preveem, e que podem ser ao mesmo tempo, aplicadas para casos de bullying na internet. Diante do cometimento da conduta, qual dispositivo deverá ser aplicado? Considerando a analogia in bonan partem, poderíamos advogar em favor da aplicação do caput em detrimento de um parágrafo único natimorto – pelo menos até que a redação do caput seja corrigida e a expressão “virtual” seja dali extirpada.

Além da mais, temos o problema de outras questões não esclarecidas na redação do dispositivo relacionadas a outros meios para a prática da intimidação. Ele menciona “meios físicos” e “meios materiais”. Qual é exatamente a diferença entre eles? Ele menciona ainda ações “morais” e “sociais”. O que caracteriza uma “ação moral”? Quando você busca um conceito de “ação moral”, você se confronta com a ideia de que a moral atua como uma norma que orienta os comportamentos humanos. Ainda que se pressuponha a liberdade dos indivíduos e a impossibilidade de prever todas as ações, a moral vai desenvolver valores nos quais as ações devem estar submetidas. Mas quando o assunto é Direito, nós trabalhamos com a ciência da moral, que é a ética. A moral, dentro do campo subjetivo, pode variar dependendo da região, cidade, e até mesmo pessoa. Esses conceitos são absolutamente obscuros do ponto de vista legal, e nos colocam à mercê do alvedrio de juízes e tribunais, que observarão muitas vezes os fatos sob suas próprias lentes morais.

O Direito Penal, mais que qualquer outra disciplina, precisa trabalhar com a taxatividade e objetividade de seus dispositivos. Esperar que a jurisprudência corrija as falhas do dispositivo é submeter-se à vontade de cortes e juízes para que eles tragam a sua própria visão para o dispositivo em comento, e não esperar que ele produza de fato os efeitos a que se propõe em primeiro lugar. Enquanto isso, o Direito Penal Informático segue sendo maltratado com mais um dispositivo teratológico, uma nova peça de uma extensa coleção de tipos mal escritos e mal estruturados. Uma pena.

 

Dr. Raphael Chaia

Advogado especialista em Direito Digital, Compliance e Blockchain

Professor e Palestrante

PhD em Desenvolvimento Local

Pós-Doutor em Direito e Novas Tecnologias