Por Júlio Sanches Nunes
Campo grande/MS, 18 de fevereiro de 2025.
A lavagem de capitais é um crime complexo que visa conferir aparência de licitude a bens, direitos e valores provenientes de infração penal. A sua caracterização exige a presença do dolo direto, sendo incompatível com modalidades menos intensas do dolo, como o dolo eventual ou a teoria da cegueira deliberada. O presente artigo busca demonstrar a impossibilidade de aplicação dessas teorias ao crime de lavagem de dinheiro, com base na doutrina e na jurisprudência.
O crime de lavagem de dinheiro, previsto na Lei nº 9.613/1998, exigindo que o agente tenha ciência da origem ilícita dos valores envolvidos. A doutrina majoritária, incluindo autores como Luiz Flávio Gomes e Vicente Greco Filho, sustenta que esse crime requer dolo direto, ou seja, a vontade consciente de ocultar ou dissimular a origem ilícita dos bens.
A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) reforça essa exigência. No julgamento do HC 268.181/SP, o STJ reconheceu que “a tipificação do crime de lavagem de capitais exige que o agente tenha pleno conhecimento da origem criminosa dos bens, direitos ou valores envolvidos”.
Não desconhecemos que existem decisões em contrário, porém o objetivo do presente texto não é exaurir o tema.
O dolo eventual ocorre quando o agente, embora não deseje diretamente o resultado, assume o risco de produzi-lo. No entanto, a lavagem de dinheiro requer um comportamento ativo de ocultar ou dissimular a origem ilícita dos valores, o que é incompatível com uma postura de mera aceitação passiva do resultado.
Conforme ensina Guilherme de Souza Nucci¹, “o dolo eventual é incompatível com crimes que exigem um elemento subjetivo específico, como é o caso da lavagem de dinheiro, em que se exige a intenção clara de esconder a origem criminosa dos bens”.
A teoria da cegueira deliberada, originada no direito anglo-saxão (willful blindness), foi incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro para impedir que agentes se eximam da responsabilidade penal alegando desconhecimento voluntário de fatos ilícitos.
Essa teoria aplica-se quando o agente, diante de fortes indícios da ilicitude da origem dos recursos, deliberadamente evita aprofundar sua investigação para não tomar ciência do crime. Assim, a conduta do agente é equiparada ao dolo eventual, permitindo sua responsabilização penal.
De acordo com Pierpaolo Cruz Bottini², se a lei brasileira não prevê a punição da lavagem de dinheiro culposa, não parece adequado fazer uso de um instituto que abarca tal modalidade em sua concepção, a não ser que se faça um esforço para distinguir a cegueira deliberada que substitui o dolo, daquela que substitui a culpa, trabalho intelectual que não parece presente nas decisões judiciais pátrias que fazem uso do conceito..
A aplicação do dolo eventual e da cegueira deliberada em crimes de lavagem de dinheiro tem implicações importantes na persecução penal. As defesas frequentemente argumentam pela necessidade do dolo direto para a configuração do delito, enquanto a acusação busca demonstrar que o agente, ao menos, assumiu o risco ou se colocou em estado de ignorância proposital para se beneficiar da transação ilícita.
Segundo Fernando Capez³ “Em suma, seja pela própria natureza dos verbos ocultar ou dissimular, que pressupõe ciência prévia da origem infracional do objeto material, seja por não existir a expressão deve saber como elementar do tipo, não é possível se falar na prática do crime de lavagem de dinheiro (artigo 1º, caput) mediante dolo eventual. O legislador, no intuito de evitar um perigoso alargamento típico que permitisse na prática a responsabilidade objetiva, optou pela prudência, inserindo condutas que pressupõem dolo intenso, seja para esconder algo das autoridades, seja para realizar toda sorte de manobras para conferir aparência de falsa legalidade a bens ilícitos”.
Diante da exigência legal e doutrinária do dolo direto para a tipificação do crime de lavagem de capitais, a aplicação do dolo eventual e da teoria da cegueira deliberada revela-se incompatível com o ordenamento jurídico brasileiro. A adoção de tais teorias poderia comprometer garantias fundamentais, como o princípio da culpabilidade e a presunção de inocência, sendo essencial que a imputação penal ocorra com base em elementos concretos de dolo direto e efetivo conhecimento da ilicitude dos valores envolvidos
¹ NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. São Paulo: Forense, 2020.
JULIO CEZAR SANCHES NUNES
Mestrando em Direito Penal – Universidad de Buenos Aires – UBA