A contribuição da lei de drogas para o agigantamento do sistema prisional no Brasil

Juiz Roberto Ferreira Filho

Importante estudo anual acerca da violência, dos gastos com segurança pública e do sistema prisional no Brasil é apresentado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), o qual é intitulado Anuário Brasileiro de Segurança Pública.

O estudo apresentado em 2022 apontou que o país, em 2021, contava com população carcerária de 820.689 presos, indicando tendência de crescimento, após pequeno período de estagnação nos anos de 2019/2020 – especialmente em decorrência da pandemia de Covid-2019 e das providências que foram adotadas para restringir, ao máximo, a decretação e manutenção de prisões provisórias ou em cumprimento de penas em regimes semiaberto, ou aberto, substituindo-as por prisões domiciliares ou por medidas cautelares diversas da prisão[1].

Os referidos números baseiam-se em dados sistematizados e divulgados pelo Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), mas o próprio Anuário informa que os dados apresentados pelo Banco Nacional de Monitoramento de Prisões do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) são diversos, apontando para o total de 919.272 pessoas privadas de liberdade no Brasil.

Os dados são obtidos de fontes diversas, já que o DEPEN se utiliza das informações coletadas diretamente nas unidades prisionais do país, enquanto que o CNJ obtém suas informações do referido Banco Nacional de Monitoramento de Prisões, as quais são alimentadas pelas Varas de Execuções Penais e dos mandados de prisões.

O Anuário destaca, todavia, que os dois números, embora divergentes, apontam tendência de crescimento do número de presos.

Com base nos números do DEPEN, a pesquisa do Fórum indica que, no Brasil, a média em 2021 foi de 384,7 presos por 100.000 habitantes, enquanto que no ano anterior a média era de 358,7 presos por 100.000 habitantes.

Aponta o Anuário 2022 que o Brasil é o terceiro país do mundo com o maior número absoluto de presos, atrás, tão somente, da China e dos EUA.

Acerca do perfil dos presos brasileiros, o Anuário 2022 aponta que 67,5% são de cor/raça negra, 46,4% de jovens de 18 a 29 anos, reforçando a tendência alcançada nos estudos anteriores (em 2011, por exemplo, o total de negros era de 60,3% da população encarcerada, e, em 2021, o total de jovens de 18 a 29 anos era de 48,6% do total dessa população).

Especificamente em relação ao delito de tráfico de drogas, observa-se que, do total de presos, 21% são por esse tipo de delito, enquanto que, entre as mulheres, esse total alcança o impressionante número de 66%[2].

Esses reiterados dados são ainda mais preocupantes porque o sistema prisional em geral, e o brasileiro em particular, são espaços de constantes violações de direitos fundamentais.

Ainda assim, mesmo após o público reconhecimento pela mais alta Corte do país a respeito do cenário violador de direitos fundamentais que impera nos presídios brasileiros (ADPF 347), a centralidade da utilização da pena de prisão pelo sistema de justiça criminal no Brasil, destacadamente no que se refere aos crimes de tráfico de drogas, é persistente.

É, na prática, como se o acusado pelo crime de tráfico de drogas, o encarcerado, fosse totalmente descartável, ou, como diz Mbembe[3], como se considerássemos o outro como um mero objeto posto ao nosso alcance.

A lógica do encarceramento como instrumento de enfrentamento e prevenção de crimes no Brasil, mesmo para os defensores de movimentos expansionistas do direito penal, já deveria ter sido repensada faz muito tempo, mesmo antes da emblemática decisão do STF, mesmo porque a prisão não diminui a taxa de criminalidade, pelo contrário.

Como adverte Foucault[4]:

As prisões não diminuem a taxa de criminalidade: pode-se aumentá-las, multiplicá-las ou transformá-las, a quantidade de crimes e de criminosos permanece estável, ou, ainda pior, aumenta (…). A prisão não pode deixar de fabricar delinquentes. Fabrica-os pelo tipo de existência que faz os detentos levarem: que fiquem isolados nas celas, ou que lhes seja imposto um trabalho inútil, para o qual não encontrarão utilidade, é de qualquer maneira ‘não pensar no homem em sociedade’; é criar uma existência contra a natureza inútil e perigosa (…); o sentimento de injustiça que um prisioneiro experimenta é uma das causas que mais podem tornar indomável seu caráter. Quando se vê exposto a sofrimentos que a lei não ordenou nem mesmo previu, ele entra num estado habitual de cólera contra tudo o que o cerca; só vê carrascos em todos os agentes da autoridade: não pensa mais ter sido culpado; acusa a própria justiça.

A insistência no encarceramento em massa no Brasil é, além de totalmente equivocada e contraproducente para o fim que diz almejar, qual seja, a redução da criminalidade, é perversa sob todos os aspectos, perpetuando injustiças de todas as ordens, incluindo as de cunho racial e social.

A fábrica de “mortos-vivos” continua a pleno vapor, selecionando e segregando os “indesejáveis”, destinando, a eles, o “pior dos mundos”, e “vendendo ilusões” de controle da violência, esquecendo ou fingindo que esquece que o encarceramento é um dos mais importantes fatores criminógenos, inclusive em razão da rotulação que produz na vida do apenado, o qual é “introduzido em um universo paralelo no qual a discriminação, o estigma e a exclusão são perfeitamente legais (…), não se admirando que a maioria dos rotulados acabe voltando para a prisão”[5].

Essa perversa lógica de encarceramento em massa, de guerra contra o tráfico, guerra contra a violência, etc., vem traçada, justamente, pela necro política, “que se estrutura em cenários de ausência de direitos, e tem o potencial de matar sem subterfúgios”[6].

Urge que as agências estatais que atuam na área criminal, independentemente da eventual atualização da legislação de drogas, sejam mais criteriosas e mais cautelosas na atuação nestes casos, inclusive na adequada valoração da prova produzida, inclusive a testemunhal, quiçá para conseguirem ao menos minimizar a lógica cruel do encarceramento e de todos os malefícios que dele decorrem.

 

[1] Recomendação nº 62 do CNJ, de 17 de março de 2020.

[2] ÁVILA, Thiago Pierobom de e GOMES FILHO, Dermeval Farias. A guerra aos traficantes: uma análise do custo humanitário da política antidrogas. Revista direitos fundamentais & democracia., v. 27, n. 2, p. 210-240, mai./ago. 2022, p. 224.

[3] MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade. Tradução: Sebastião Nascimento. São Paulo: n-1 edições.org, 2021, p. 71.

[4] FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução: Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 26ª edição, p. 221-222.

[5] ALEXANDER, Michelle. A nova segregação: racismo e encarceramento em massa. Tradução: Pedro Davoglio. São Paulo: Boitempo, 2017.

[6] AMARAL, Augusto Jobim do; VARGAS, Melody Claire Schmidt. Necropolítica, racismo e sistema penal brasileiro. Revista de direito, Viçosa, v. 11, n. 1, p. 105.

 

Roberto Ferreira Filho

Graduado pela Universidade Estadual de Maringá/PR;

Mestre em Direito Processual e Cidadania (Unipar);

Mestre em Estudos Fronteiriços (UFMS);

Mestre em Garantismo e Processo Judicial (Universidade de Girona);

Doutorando em Direitos Fundamentais e Democracia;

Juiz de Direito no Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul na 1ª vara criminal de Campo Grande/MS