Campo Grande/MS, 06 de agosto de 2024.
O princípio constitucional da presunção de inocência — que determina que ninguém pode ser considerado culpado antes de sentença penal condenatória — não é suficiente para fazer os operadores da Justiça brasileira agirem de maneira igualitária quando se trata de réus negros, pobres e socialmente vulneráveis.
A constatação, baseada em análises empíricas, está demonstrada em um dos artigos contidos no primeiro volume da Revista Eletrônica do Conselho Nacional de Justiça (e-Revista CNJ) de 2024.
O artigo “Cidadania, sociologia e direito — uma análise de padrões diferenciados em processos de homicídio doloso”, de Hugo Bridges Albergaria, traz uma pesquisa analítica feita em 303 processos de homicídios dolosos arquivados entre 2015 e 2016.
Em 76% dos casos foi decretada a prisão do acusado no curso do processo (preventiva). A perda da liberdade se concentrou nos indivíduos que compõem os estratos socioeconômicos com maior grau de pobreza.
Vale ressaltar que os pressupostos do Direito Penal brasileiro relativos à prisão preventiva comunicam que a medida pode ser decretada como garantia da ordem pública ou econômica ou para assegurar a aplicação da lei quando houver prova da existência do crime ou indício suficiente de sua autoria.
Mestre em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, além de auditor e gerente na Divisão de Auditoria da Comissão de Eleições do Estado da Carolina do Sul, nos EUA, Hugo Bridges Albergaria utilizou modelos estatísticos, considerando variáveis como raça/cor, educação, tipo de defesa e qualificadores nos processos. Os processos foram julgados pelas secretarias I e II do Tribunal do Júri de Belo Horizonte.
Entre os resultados mais impactante do estudo está na análise estabelecida pela variável raça/cor em relação ao cumprimento de pena em regime inicial fechado: indivíduos de raça/cor preta têm dez vezes mais chance de serem presos preventivamente do que indivíduos da raça/cor branca.
A pesquisa conclui que os réus economicamente mais vulneráveis tendem a receber penas mais severas do que os de status socioeconômico elevado, apontando para uma tendência do Judiciário em reproduzir desigualdades sociais e perpetuar a exclusão de grupos sociais vulneráveis à condição de cidadania.
“Na prática, parece haver níveis mais altos de encarceramento e penas mais severas a indivíduos de status socioeconômico mais baixo e inseridos em um contexto de maior vulnerabilidade social”, afirma o autor.
Fatores como a atuação da magistratura, a defesa das causas por advogados particulares ou defensores públicos, a condenação ou a absolvição do acusado, a dosimetria da pena, a duração do processo, a escolaridade e a ocupação do réu, e outros padrões de diferenciação revelaram padrões de julgamento “que indicam tendência do Judiciário em reproduzir as desigualdades sociais, enfraquecendo o acesso de certos indivíduos ao direito à Justiça e contribuindo para afastar determinados grupos sociais da condição de cidadãos plenos”, afirma o pesquisador, no texto.
O artigo cita Florestan Fernandes, estudioso que se dedicou a investigar as relações sociais e raciais no país, a fim de destacar a persistência das desigualdades e do racismo estrutural no Brasil atual. “Seus estudos sugerem que as condições de desorganização social e marginalização do negro persistem, refletindo a difícil transição para uma ordem competitiva após a abolição da escravidão”, diz.
Hugo Albergaria afirma haver “negligência do Judiciário na aplicação isonômica da lei” e destaca que essa falha “perpetua as desigualdades sociais de indivíduos historicamente marginalizados, especialmente daqueles pertencentes aos estratos socioeconômicos mais vulneráveis”.
Para o autor do artigo, o Judiciário, ao invés de aproximar os brasileiros da plena condição de cidadãos, tende a afastá-los dos direitos básicos de cidadania.
A edição atual da e-Revista traz ainda outros artigos que analisam a justiça criminal no contexto do Sistema de Justiça brasileiro ou sob a perspectiva de atuação do Poder Judiciário. O objetivo da publicação é promover o debate sobre situações ou problemas concretos que impactam diretamente o acesso à Justiça, fomentando reflexões sobre soluções e caminhos possíveis.
A Revista CNJ é dedicada à análise de variados temas relacionados à atuação da Justiça, como direitos humanos, meio ambiente, garantia da segurança jurídica, combate à corrupção, incentivo ao acesso à justiça digital, uniformização e capacitação dos magistrados e servidores. Nesse primeiro semestre, a publicação somou mais de 18 mil visualizações e, desde sua reformulação em 2019, são mais de 200 mil visualizações. Com informações da assessoria de imprensa do CNJ.
Fonte: https://www.conjur.com.br/2024-ago-06/e-revista-cnj-justica-e-mais-rigorosa-para-pessoas-pretas-e-vulneraveis/