Campo Grande, 19 de junho de 2024
Por: Júnior Maksoud
Não há como falar sobre Tribunal do Júri em Mato Grosso do Sul, e não pensar em Douglas Oldegardo Cavalheiro dos Santos. Titular da promotoria do júri da capital do Estado desde o ano de 2009, Douglas Oldegardo alcançou recentemente a expressiva marca de mil júris.
Todas as quartas-feiras, as 8 da manhã, no plenário do Tribunal do Júri, os amantes do júri são agraciados com o refino intelectual e a capacidade oratória do Promotor de Justiça que se tornou um símbolo de entrega e talento no tribunal popular.
Garantista: Por que escolheu o Direito?
Oldegardo: Não escolhi o escolhi, exatamente. O Direito, em verdade, foi parte de um trajeto cuja chegada, a par das incertezas que o destino nos impõe, nunca deixou de ser uma crença pra mim, que era o ingresso no Ministério Público. Mais até que o ingresso no MP: A Promotoria do Júri da Capital.
Era esse, o sonho, o desejo. A bem da verdade, se o concurso exigisse apenas curso superior, teria feito filosofia, que desde aquela época já me perseguia. Mas precisava cumprir os requisitos. Por isso fui ao vestibular e, depois, cumprir com todos os currículos da faculdade.
Mas isso, anoto, não foi um descontentamento. O Direito flerta continuamente com a ética e com a filosofia moral, no mesmo passo em que regula, juntamente com o processo e seus ritos, a estrutura dogmática dos controles civilizatórios, o que remete a uma semelhança semiótica com a história das religiões, que também era, e sempre foi, também, algo que sempre me atraiu. Por isso o curso de Direito me foi muito prazeroso. Mas esse foi o porquê: Para ser Promotor do Júri de Campo Grande.
Garantista: Por que e quando escolheu ser Promotor de Justiça?
Oldegardo: Meu pai viveu uma vida dedicada à causa pública. Foi parlamentar durante duas décadas, somando seus mandatos na vereança e no parlamento estadual. Foi Deputado Constituinte. Sempre o segui. Desde muito pequeno. Foi meu modelo de retidão, de santidade, de correção e de acerto, na vida afora e nas coisas privadas. Foi um grande parlamentar. Visionário. Fez uma revolução progressista na fronteira, nossa origem, que até hoje gera reflexos. Deixou legados na educação, na saúde, na assistência social, no meio ambiente, quando sequer isso era pauta. E defendia suas ideias discursando, na tribuna.
Não que tenha desejado conscientemente. Mas creio que me tenha sido imposto por instinto, por inspiração, segui-lo, refleti-lo. E para fazer isso teria que ser ‘servir ao povo com a palavra’. Nunca quis o caminho da política, embora tenha sido, em alguns instantes, empurrado para ela. Preferi outras paragens. E acompanhei o Ministério Público se forjando pós Constituição de 88, com a tutela da sociedade.
Esse viés de tutelar a sociedade e, na mesma quadra, pregar o justo por onde puder passar, me levou aos tentos vermelhos. E o Júri era o cenário mais pujante para isso. Nascia ali, em meio àquela herança inspiracional, a escolha.
Garantista: Qual o júri mais marcante de sua carreira?
Oldegardo: Ouço essa pergunta com alguma frequência. E não tenho uma resposta para ela. Tenho rascunhado algumas reminiscências. Não com uma pretensão (ainda) concreta de torná-las, em conjunto, uma obra. Mas a fim de que a memória, cada vez mais traiçoeira, não leve consigo fatos criticamente marcantes. Houve muitos. Sempre cito alguns, à escolha do momento. Vou fazê-lo assim.
Lembro-me agora de um processo que chamamos ‘Caso Claudinéia’. Uma garota de programa morta por três homens com socos, chutes, pontapés e, ao final, golpes com uma pedra enorme que lhe desfiguraram a face. O caso foi a julgamento. No júri, a pedra, que lancei com todas as minhas forças ao chão. Não se quebrou, mas retumbou nas paredes do plenário Giordano Neto.
Nos autos, havíamos juntado uma carta. Claudinéia morreu numa sexta. O sábado decorreu sob os procedimentos médico-legais e seu velório foi no domingo. Era Dia das Mães. Seu filho, de oito anos, houvera recebido um trabalho na escolha. Fazer uma carta dizendo à mãe por que a amava e o que desejava para ela. No velório, disseram, o jovenzinho encostou ao lado do caixão lacrado e colocou o papelzinho dobrado por cima dos véus. Não pode lhe entregar pessoalmente.
A família me trouxe a carta. Juntei ao processo. E a li, em peroração. Foi um dos momentos mais tocantes que me lembro, em quase três décadas de plenário. O Júri traz cicatrizes. Casos marcantes normalmente são aqueles que as geram.
Garantista: Como é ter completado a expressiva marca de mil juris?
Oldegardo: Foi um momento marcante. Um dia de homenagens tocantes, da parte de todos os que lá estavam, e pelas quais sou imensamente grato. E é um dado forte, que nos toca. Fui advertido disso por alguns colegas, Promotores do Júri do Brasil afora, como Marcelo Balzer, titular do Júri de Curitiba, Eugênio Amorim, titular do Júri de Porto Alegre, Rogério Zagallo, titular do Júri de São Paulo. Estes, em particular, promotores com mais de mil júris com os quais resenhei a respeito da proximidade do milésimo, os quais, em uníssono, alertaram sobre o impacto emocional que me atingiria ao me levantar com a beca e olhar para a sociedade sabendo ser, aquela, a milésima vez. E, de fato, foi impactante. Costumo dizer que o homem é vivo através de seus símbolos. E isso é, eu queira ou não, eu goste ou não, um símbolo. Postular o que a convicção mais pura julga como o justo perante a sociedade em que vivo e convivo pela milésima vez é um símbolo significativo.
Guardo esse júri num lugar especial. Agora, sobre ‘como é ter completado a expressiva marca’? É uma ambiguidade. Não deixa de ser um pin na lapela, a partir do júri seguinte. Pois que a partir do seguinte é que se tem, de fato, mil júris. E carregar mil júris é uma marca de rodagem.
Mas sempre disse e sigo repetindo: Não há um júri igual ao outro. E a principal diferença entre um tribuno com 1002 júris e um tribuno com 2, é o fato de que o primeiro viu algumas coisas a mais que o segundo. Mas sempre haverá algo que o segundo viu, que o primeiro desconhece. E assim, em cada júri, estamos sempre aprendendo uns com os outros. E todos com as lições de natureza humana que ali se evisceram. Sigo aprendiz. Seguimos todos, aprendizes. Sempre. Quem perde essa noção, se perde por completo.
Garantista: Qual conselho daria aos estudantes de Direito?
Oldegardo: O mesmo de sempre: escolha (logo, mas com seriedade) o seu caminho! A distância que separa o dia de hoje do dia da realização do seu sonho é um mistério guardado pelo destino. Esse tempo, se levará 1, 3, 5, 7, 9, 11 ou 15 anos pra se realizar, você só saberá quando o concretizar. Por isso, lembre-se de Epicuro: Metade da vida é ditada pelo acaso. A outra metade pelo seu esforço. O acaso você não domina. O seu esforço, sim. Seja lá qual for a distância entre hoje e o dia da realização do seu sonho, se você deixar pra começar amanhã, seu sonho demorará um dia a mais pra se realizar. Se você deixar pra semana que vem, demorará uma semana a mais. Se deixar pro ano que vem, demorará um ano a mais. Mas se começar agora, demorará não mais do que o necessário. Portanto, escolha seu rumo. E comece a trilhá-lo!