Campo Grande, 17 de junho de 2024
Violação do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e Tratados Internacionais de Direitos Humanos
Por Herika Ratto
O Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, do Ministério da Justiça, aprovou, no dia 26.03.2024, uma recomendação de extinção de cantinas em unidades prisionais em todo o país – Recomendação n.º 02, de 26 de março de 2024[1].
O texto aprovado estabeleceu que os estados devem atuar para “não expandir” as cantinas já existentes e que “atuem” para o “encerramento das existentes”. Entre as justificativas para a recomendação, o Conselho cita que os estabelecimentos são, “historicamente” ocupados por organizações criminosas. O texto justifica o cumprimento da recomendação, pois as chamadas “cantinas” acabaram constituindo-se em um espaço que propicia a atividade das organizações criminosas, uma vez que a escassez de alimentação e demais itens essenciais à sobrevivência no cárcere acabam por concentrarem-se nesses locais de venda e são monopolizados pelos presos.
A partir de recomendação feita pelo CNMP (Conselho Nacional do Ministério Público), no dia 12.06.2024, foi publicada a Recomendação do MPMS (Ministério Público Estadual Mato Grosso do Sul), visando providências ao nível estadual para cumprimento da recomendação do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária.
Na Recomendação do MPMS, foi dado prazo de 30 dias para que a Agepen (Agência Estadual de Administração do Sistema Penitenciário), se manifeste, recomendando que a AGEPEN, e, à Secretária de Estado de Justiça e Segurança Pública – SEJUSP, adotem providências, mediante composição entre os órgãos, para a não expansão das cantinas em estabelecimentos penais e, atuem, imediatamente, para o encerramento das existentes, vedando-se a comercialização de produtos e afins.
A assistência ao preso e ao internado é dever do Estado, nos termos do artigo 10, da Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984 (Lei de Execução Penal).
Dito isso, é obrigação do Estado, dar assistência ao interno estendendo ao egresso, mas essa assistência nunca foi cumprida.
Conforme disposto no artigo 10 da Lei de Execução Penal, a assistência ao preso é dever do Estado, objetivando prevenir o crime e orientar o retorno à convivência em sociedade. Em vista disso, os estabelecimentos prisionais devem garantir aos presos às necessidades básicas e pessoais.[2]
Nos termos da Resolução nº 4, de 5 de outubro de 2017 do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária[3], que dispõe sobre padrões mínimos para a assistência material do Estado à pessoa privada de liberdade, elenca parâmetros mínimos de lista de produtos de higiene, de artigos de asseio e roupas limpas às pessoas privadas de liberdade:
Kit de Asseio Pessoal
Sabonete para banho (Reposição Semanal)
Shampoo (Reposição Mensal)
Desodorante (Reposição Mensal)
Rolos de Papel Higiênico (Reposição Quinzenal)
Aparelho de barbear descartável (inclusive para mulheres) – Reposição Mensal
Escova de dentes (Reposição Mensal)
Creme dental ou pasta de dente (Reposição Mensal)
Absorventes femininos (mínimo, 15 unidades) (Reposição Mensal)
Pente de plástico maleável (Conforme demanda)
Corta-unhas
Kit de Limpeza (entregue por cela)
Detergente ou sabão líquido (Reposição Mensal)
Pano de chão (Conforme Demanda)
Kit de Asseio para Uso infantil (entregue por bebê/criança)
Sabonete Reposição Semanal
Shampoo Reposição Mensal
Pomada assaduras (de prevenção) Reposição Quinzenal
Pomada assaduras (de tratamento) Conforme Demanda
Fraldas infantis Conforme Demanda
Óleo mineral para pele Conforme Demanda
Condicionador
É sabido que o atual sistema carcerário brasileiro está à beira de um colapso. Segundo dados os presídios no Brasil têm déficit de 166,7 mil vagas. Com 649,6 mil pessoas privadas de liberdade e apenas 482,9 mil lugares no sistema, o cenário de superlotação nos presídios dificulta o processo de ressocialização e favorece a ampliação do poder das facções criminosas. (Secretaria Nacional de Políticas Penais – Dados até junho/2023).
Além disso, a falta de investimento e estrutura adequada para a reabilitação dos presos tem gerado altos índices de reincidência criminal, causando uma espécie de ciclo vicioso no sistema.
Ora, se nem o dever de fornecer itens (ainda que mínimo: “papel higiênico”) ao preso o Estado não cumpre, poderia ele cumprir com o fornecimento da lista de produtos de higiene, de artigos de asseio e roupas limpas às pessoas privadas de liberdade, que o próprio Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, exige na resolução que foi editada visando melhor qualidade no tratamento penal ofertado às pessoas privadas de liberdade no sistema prisional?
Pois bem, no Estado de Mato Grosso do Sul, o funcionamento de cantina dentro dos presídios é regulamentado pela Portaria Normativa 27, publicada em agosto de 2021 pela Agepen. Ressalta-se ainda que, quando da criação da referida portaria que passou a dispor sobre gestão, administração e fiscalização das cantinas das unidades prisionais da AGEPEN/MS, houve inclusive Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) firmado entre a AGEPEN e o Ministério Público Estadual de MS.
Cumprir com a Recomendação n.º 2, de 26 de março de 2024 do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, do Ministério da Justiça, ou qualquer outra que recomende o seu seguimento, visando a não expansão das chamadas “cantinas” em estabelecimentos penais e, atuação os entes federados para o encerramento das existentes, vendando-se a comercialização de produtos e afins, é medida temerária.
Primeiro porque, a Recomendação nº 2, de 26.03.2024 do CNPCP, viola tratados internacionais de direitos humanos. Os direitos humanos dos detentos encontram-se previstos no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, a Convenção Americana sobre os Direitos Humanos e a Convenção contra a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes da ONU.
Segundo porque, a Recomendação nº 2, de 26.03.2024 do CNPCP, viola a Constituição Federal de 1988, que assegura ao detento além da integridade física e moral, outros direitos fundamentais, tais como o direito à vida, à saúde, à higiene, alimentação sadia. O Estado não dá ao preso nenhum material de higiene.
Terceiro porque, a Recomendação nº 2, de 26.03.2024 do CNPCP, viola: As Regras Mínimas das Nações Unidas para o tratamento de presos “REGRAS DE MANDELA”; As Regras das Nações Unidas para o Tratamento de Mulheres Presas e Medidas não Privativas de Liberdade para Mulheres Infratoras “REGRAS DE BANGKOK”.
Quarto porque, a Recomendação nº 2, de 26.03.2024 do CNPCP, viola o Art. 13 da Lei de Execução Penal, que dispõe expressamente sobre o tema: O estabelecimento disporá de instalações e serviços que atendam aos presos nas suas necessidades pessoais, além de locais destinados à venda de produtos e objetos permitidos e não fornecidos pela Administração.
Mirabete[4] lembra que a regra do art. 13 se justifica em razão da “natural dificuldade de aquisição pelos presos e internados de objetos materiais, de consumo ou de uso pessoal”. Como é cediço, no particular o Estado só cumpre o que não dá pra evitar. Proporciona a alimentação ao preso e ao internado; nem sempre adequada. Os demais direitos assegurados e que envolvem a assistência material não são respeitados.
Quinto porque, no Estado de Mato Grosso do Sul, toda a gestão é realizada pela própria administração pública. Quando do TAC, houve inclusive a preocupação no tocante ao financiamento de organizações criminosas, vejamos:
Sexto porque, os valores da revenda de produtos aos presos são destinados ao Funpes (Fundo Penitenciário Estadual), e usado exclusivamente em projetos em prol do preso e da unidade prisional.
Como vê, a medida sugerida pelo CNPCP para que os entes federados atuem, imediatamente, para o encerramento das cantinas existentes, vendando-se a comercialização de produtos e afins, a meu ver, é preocupante, sendo sem sombra de dúvidas uma grave violação à dignidade da pessoa humana. A cantina é um local onde os presos podem adquirir alimentos (muitas vezes são insuficientemente fornecidos pelo Estado) e produtos de higiene pessoal, que o Estado não fornece.
Em que pese a medida adotada, entendo pelo não seguimento da Recomendação nº 2, de 26.03.2024 do CNPCP, vez que, ela não pode sobrepor-se à Lei Federal e à própria Constituição Federal.
E mais, qualquer recomendação visando a não expansão das chamadas “cantinas” em estabelecimentos penais e, atuação os entes federados para o encerramento das existentes, vendando-se a comercialização de produtos e afins, não são normas, portanto, não são vinculativas, não havendo respaldo legal para a obrigação do seu cumprimento.
[1] BRASIL. Ministério da Justiça e Segurança Pública. Disponível em: https://dspace.mj.gov.br/handle/1/12754?locale=es. Acesso em 14. Junho.2024.
[2] NUNES, Adeildo. Comentários à lei de execução penal. 1° Edição. Rio de Janeiro: Forense, 2016.
[3] BRASIL. Resolução nº 4, de 5 de outubro de 2017. Disponível em: https://www.gov.br/senappen/pt-br/composicao/cnpcp/resolucoes/2017/resolucao-no-4-de-05-de-outubro-de-2017.pdf. Acesso em 14. Junho.2024.
[4] MIRABETE, Julio Fabbrini. Execução Penal. 9° Edição. São Paulo. Atlas, 2000.