Religião não pode se opor à vida, diz juíza ao autorizar transfusão em bebê

Campo Grande, 28 de maio de 2024

O exercício do poder familiar e a liberdade religiosa não se sobrepõem ao direito à saúde e à vida, sob pena de afronta ao princípio da dignidade humana. Com essa fundamentação, a juíza da Vara da Infância e Juventude de Ilhéus (BA) deferiu pedido liminar do Ministério Público (MP) para um recém-nascido ser submetido a transfusão de sangue.

Testemunhas de Jeová, os pais do bebê alegaram questões de fé, em documentos que assinaram, ao proibirem médicos de realizar esse procedimento.

“A liberdade religiosa, elemento fundamental da sociedade plural, deve conviver com a bússola do estado laico e outros direitos humanos fundamentais”, ressalvou a juíza Sandra Magali Brito Silva Mendonça.

Conforme a magistrada, a conduta dos pais, “na verdade, indica uma forma de intolerância religiosa, comportamento proscrito pela norma jurídica”, porque eles, no exercício do poder familiar, impuseram a própria convicção religiosa ao filho, hospitalizado com gravíssimo problema de saúde.

A julgadora também embasou a sua decisão no artigo 1º do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que prevê a proteção integral e a prevalência do princípio do melhor interesse para essa faixa etária.

De acordo com Sandra Mendonça, por esse princípio, o filho foi alçado à condição de pessoa humana merecedora da tutela do ordenamento jurídico “com absoluta prioridade comparativamente aos demais integrantes da família de que ele participa”.

Recusas por escrito

Nascido prematuramente e acometido de diversos problemas de saúde, entre os quais insuficiência respiratória e cardiopatia, o bebê está internado Hospital Materno-Infantil Dr. Joaquim Sampaio.

Conforme relatório da equipe médica, devido à gravidade do quadro clínico, é elevada a probabilidade de a criança precisar ser submetida a transfusão sanguínea. Porém, sob alegação de ofensa à religião que professam, os pais do paciente se opuseram a esse procedimento.

A recusa dos pais consta de dois documentos que assinaram e estão nos autos. Em um deles, foram taxativos: “Não aceitamos transfusão de sangue”.

No outro, justificaram que, “como Testemunhas de Jeová, devido às nossas crenças baseadas na Bíblia, decidimos optar por tratamentos médicos cientificamente reconhecidos que evitem transfusões de sangue (Atos 15:29)”.

A postura dos responsáveis pelo paciente motivou os médicos a acionarem o MP na busca por autorização judicial para eventual transfusão.

Com o objetivo de viabilizar a preservação da vida do bebê e conferir aos médicos a segurança jurídica para realizarem o seu trabalho da forma mais técnica possível, o promotor Pedro Nogueira Coelho ingressou com requerimento de alvará de suprimento de consentimento parental combinado com pedido de tutela provisória de urgência.

Diante da gravidade do caso, o representante pleiteou a concessão da liminar inaudita altera pars, ou seja, sem que os pais fossem ouvidos.

A juíza considerou pertinente o pedido de liminar sem que fosse ouvida a parte contrária, porque “a questão tratada nos autos é extremamente urgente, uma vez que envolve risco de morte iminente”.

Em sua decisão, tomada na última sexta-feira (24/5), a magistrada autorizou a equipe médica do hospital a realizar a transfusão de sangue, “se” e “quando” necessária, “bem como todos os procedimentos que se fizerem pertinentes ao resguardo da vida e saúde da criança”.

A julgadora assinalou que a liberdade religiosa está no cerne dos direitos fundamentais. Porém, neste aparente embate de direitos constitucionais, nada pode se opor ao direito à vida, principalmente, de um recém-nascido, que também tem o seu direito à liberdade de religião, que pode não ser a mesma dos pais.

“O exercício do poder familiar tem limites cristalinos na norma jurídica e atualmente não mais se confunde com o direito autoritário dos responsáveis legais na condução da vida da criança”, finalizou.

Processo 8005412-97.2024.8.05.0103

 

Fonte: Consultor Jurídico

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