Campo Grande, 24 de abril de 2024
A Terceira Seção do STJ, responsável por uniformizar o entendimento das duas Turmas criminais da Corte, voltou a tratar das abordagens policiais em um julgamento importantíssimo realizado.
No julgamento, a Seção fixou que a fuga ao avistar uma guarnição policial justifica a busca pessoal e ressaltou que o ônus de comprovar que o imputado realmente fugiu é da acusação.
Um dos argumentos de quem defende uma ausência de rigidez dos requisitos das buscas realizadas pela polícia é do de que esse tipo de procedimento é comum em aeroportos, estádios, shows, etc.
O relator do feito, ministro Rogério Schietti, começou o voto rebatendo esse ponto. Ele ressaltou que essas buscas de natureza contratual (consensual) diferem-se das buscas pessoais, que possuem natureza processual penal.
Para o ministro, buscas pessoais de natureza processual penal exigem requisitos mais rigorosos.
O relator também destacou que uma busca de cunho processual penal difere-se de uma blitz de trânsito realizada com o escopo de fiscalização da malha viária.
O ministro observou que as abordagens de trânsito são abordagens pontuais decorrentes do poder de polícia administrativo. “Essas buscas realizadas no trânsito não autorizam automaticamente o agente policial a fazer uma revista no motorista, nem no veículo, salvo se tiver uma fundada suspeita da prática de um crime ou quando houver uma violação grave a uma norma de trânsito, como, por exemplo, um condutor que foge ao avistar a blitz ou que está em uma velocidade excessiva e trafega na contramão”.
Schietti ressaltou, ainda, o constrangimento causado pelas buscas policiais, que normalmente são feitas à vista de todos, no meio da rua.
O ministro pontuou que muitos protocolos policiais orientam que o policial, como forma de garantir sua segurança, obriguem a pessoa a virar de costas, abrir as pernas, entrelaçar os dedos e muitas vezes a deitar no chão de bruços, sempre, claro, sob a mira de uma arma, o que demonstra que esse tipo de procedimento, que causa constrangimento, deve que ser feito com ressalvas e sempre de forma fundamentada.
O ministro deixou claro que não estava questionando a legalidade do protocolo, que visa garantir a segurança do policial, mas sim demonstrar que esse tipo de procedimento gera, sim, constrangimento.
E ressaltou ainda, um estudo sobre racismo e abordagem policial em que jovens de bairros periféricos do Rio de Janeiro. “Eu fico pensando como será a minha vida. Eu vou ser parado pela polícia todo dia?”, disse um deles.
“Eu não posso usar a roupa que eu gosto”, disse outro.
“Eles tentam imprimir que a gente é o suspeito. A gente acaba até duvidando da própria honestidade”, ressaltou mais um entrevistado.
Schietti advertiu que a legalidade ou não de uma busca pessoal não pode depender do encontro fortuito de um objeto.
“A fundada suspeita para uma busca deve ser sempre prévia e a validade da medida independe do resultado da busca. Se havia fundada suspeita de posse de corpo de delito, a ação policial é legítima, mesmo que o indivíduo seja inocente. Se não havia fundada suspeita, a ação é ilegal, ainda que o indivíduo seja culpado”.
O ministro ressaltou estudo que mostra que de cada 100 abordagens realizadas pela polícia, 99 são infrutíferas.
Críticos da jurisprudência do STJ sobre busca pessoal sempre afirmam que o policial ostenta experiência e um tirocínio que o permitem saber quem é ou não suspeito.
Sobre esse ponto, Schietti ressaltou que a jurisprudência do Supremo e da Corte Interamericana de Direitos Humanos já rechaça esses elementos subjetivos que dependem exclusivamente da percepção pessoal de um indivíduo.
“Nós não estamos desprezando o tirocínio policial. Estamos apenas dizendo que isoladamente tal elemento não pode autorizar uma revista, uma vez que além de poder, representar a reprodução inconsciente de preconceitos estruturais, ainda é impossível de ser submetido ao controle judicial, tamanha a sua subjetividade”, pontuou.
“Portanto, os requisitos para uma abordagem devem ser de natureza objetiva”, disse.
“Do mesmo modo que um juiz não pode fundamentar uma decisão apenas por sentir que o acusado ou testemunha mentiu em seu depoimento, também não se pode admitir que o policial adote medidas restritivas de direitos fundamentais com base somente na sua intuição ou impressão subjetiva”, afirmou.
Supremo não “derrubou” tese do STJ sobre busca pessoal
O ministro também pontuou que o Supremo não “derrubou” a tese do STJ sobre busca pessoal, e disse que fugir da polícia não pode justificar o ingresso não autorizado no domicílio, mas pode autorizar, sim, uma busca pessoal.
Schietti ressaltou a preocupação de muitos (principalmente do ministro Sebastião Reis Jr.) de que o fato de o STJ validar a busca pessoal fundada na fuga pudesse fazer com que policiais passassem a justificar toda busca com base nesse argumento.
O ministro ressaltou que esse é um problema de ordem probatória e que tem que ser enfrentado.
O ministro pontuou, inclusive, que a jurisprudência vem relativizando cada vez mais os testemunhos policiais como prova única para condenações.
O relator pontuou que testemunhos policiais precisam ser corroborados, por exemplo, por vídeos, devendo estes, enquanto poucas polícias estão equipadas com câmeras, passarem por um ‘especial escrutínio’, que implica 4 diretrizes:
a) O depoimento do policial deve ser analisado com especial cautela;
b) Se o testemunho do policial parecer inverossímel, deverá ser rejeitado;
c) Se houver contradição nos depoimentos de policiais ou corroboração da versão do réu, as provas devem ser excluídas;
d) O ônus da prova sobre a legalidade da busca deve ser atribuído ao Estado.
Durante o julgamento, os ministros, Sebastião Reis Jr. e Daniela Teixeira fizeram externaram uma preocupação relacionada à utilização do testemunho policial como única prova para a comprovação da fundada suspeita. Para os ministros, a acusação deve trazer elementos concretos sempre que a fuga invocada pelos policiais for contraditada.
Panorama geral
Embora a Terceira Seção tenha fixado entendimento no sentido de validar provas colhidas a partir de buscas pessoais fundadas na alegação de policiais de que o imputado fugiu ao avistar a guarnição, ficou claro que em breve a Corte deve enfrentar o valor probatório dos testemunhos policiais.
Isso ficou expresso não apenas no do voto do relator, ministro Rogério Schietti, mas também nos votos da ministra Daniela Teixeira e do ministro Sebastião Reis Jr.
Vale lembrar que o ministro Ribeiro Dantas, atual presidente da Terceira Seção, já demonstrou em sessões recentes o seu descontentamento com a jurisprudência atual, que considera suficiente condenações baseadas somente em testemunhos policiais.
Publicado o acórdão, traremos uma matéria completa sobre esse julgamento paradigmático.
Fonte: Síntese Criminal
Foto: Fabio Braga/Folhapress