Justiça gratuita e ações predatórias explicam explosão de demandas do Direito do Consumo

Campo Grande, 20 de março de 2024

Público acompanha discursos durante a cerimônia de lançamento do Anuário da Justiça São Paulo 2024

A nova edição do Anuário da Justiça São Paulo, lançada na noite desta segunda-feira (18/3), tem como destaque o crescimento das demandas envolvendo o setor de serviços. De 2021 para 2022, as demandas de consumo no Judiciário paulista cresceram 42%, passando de 495 mil para 704 mil. Os dados do DataJud/CNJ mostram que, ao fim do ano passado, o número de novos casos consumeristas já passava de um milhão.

Com base nesse cenário, a revista eletrônica Consultor Jurídico e o Anuário da Justiça buscaram compreender, com os presentes ao evento, as possíveis causas para essa alta demanda.

De acordo com os entrevistados, entre advogados, juízes e desembargadores, há uma série de fatores que podem explicar por que as ações relacionadas a consumo tiveram um crescimento tão significativo no estado de São Paulo nos últimos dois anos. Há causas conjunturais — como a pandemia da Covid-19 — históricas e sociais, mas também há o uso abusivo da Justiça gratuita e as ações “predatórias”.

Para Maria Helena Bragaglia, sócia de Resolução de Disputas (Arbitragem/Contencioso Cível) e Consumo & Varejo do escritório Demarest, o aumento das demandas é multifatorial. Entre esses fatores, ela destaca a melhoria do acesso à Justiça, “por meio dos Juizados Especiais, o que possibilita ao consumidor, inclusive aquele que não possui advogado, buscar os seus direitos em causas de até determinado valor”.

A advogada também chama a atenção para a melhora do acesso à informação pela população: “Hoje o consumidor recebe dados informativos acerca de seus direitos através de inúmeras fontes, notadamente pelas redes sociais, o que faz com que possa ter um entendimento mais amplo sobre temas que impactam o seu dia a dia e como resolvê-los”.

Ela ainda acrescenta que os setores de saúde, finanças e moradia envolvem as situações mais importantes da vida de um ser humano, “de maneira que é de se esperar e imaginar a concentração de pleitos envolvendo essas temáticas. Para além disso, a crise econômica vivenciada, e que afeta parcela considerável da nossa população, se reflete primordialmente nesses segmentos.”

Covid-19 e demandas predatórias

A desembargadora Márcia Dalla Déa Barone, da Seção de Direito Privado do TJ-SP, sustenta que parte dessa alta demanda no universo do consumo ainda é reflexo da pandemia. “Esse aumento significativo tem uma parte ligada a fenômenos sociais, porque o Poder Judiciário é um reflexo.”

Segundo ela, outra parte está ligada a demandas predatórias. “Têm nos preocupado muito as demandas repetitivas e aquelas que nós chamamos de predatórias. Elas tiram do cartório, do juiz, a possibilidade de tratar melhor e de se dedicar melhor às causas. Muitas vezes são forjadas por grupos que, infelizmente, acabam não tendo a lealdade que deveriam ter com a Justiça e com os seus atores.”

A magistrada mencionou como exemplo uma construtora que faz um conjunto com mil apartamentos. “Muitos escritórios entram com quatro, cinco, seis ações por contrato. E não estão juntando tudo em uma ação em que se podia discutir o mesmo contrato. E isso a gente hoje compreende como sendo, talvez, a intenção de receber honorários advocatícios em cada cláusula discutida. Ou talvez falta de conhecimento técnico, não se sabe. Ou talvez má-fé, ou talvez querer usar o sistema de Justiça em seu benefício, o que é inaceitável. E se pergunta: o advogado teria de pagar custas? Não, ele normalmente pede a Justiça gratuita.”

César Zalaf, também desembargador da Seção de Direito Privado da corte paulista, vai na mesma linha. Segundo ele, a inteligência artificial proporcionou uma proliferação dessas demandas, como nos casos de atrasos de voos, matéria que ele julga muito.

“Se você pegar a relação das pessoas que voaram naquele voo que atrasou, você vai encaminhar isso para uma série de escritórios que acabaram se especializando não no direito, mas no negócio. Eles compram o futuro crédito da pessoa e propõem a demanda. Em um voo, você tem 300 pessoas que sofreram atraso. Vai ter escritório pegando essas pessoas e produzindo ações. A legitimidade disso a gente não discute. O que pode se discutir é o abuso do direito.”

O magistrado cita ainda a Justiça gratuita como outro fator de judicialização: “Há uma proliferação muito grande de pedidos por Justiça gratuita. O juiz ou o desembargador não precisa ter muito critério para conceder essa isenção. Então você tem pessoas de outros estados propondo ação aqui. E, ao invés de proporem no juizado especial, onde ele não tem custos, ele vem propor na Justiça comum, porque no juizado especial ele não ganha honorários sucumbenciais”, afirma Zalaf.

Mesmo problema

O desembargador, assim como sua colega Márcia Barone, também falou sobre as demandas predatórias: “Em ações de consignado contra bancos, às vezes o advogado propõe diversas ações para a mesma pessoa. Porque ele tem lá quatro, cinco, seis contratos, ele propõe quatro, cinco, seis ações. Mas ele poderia propor uma só para discutir. Por quê? Porque vai ganhar o dano moral em cada uma delas. O dano moral é o mesmo que é distribuído e pulverizado em várias ações”.

Zalaf conta que já proferiu algumas decisões extinguindo a causa por suspeita de demanda predatória, sobretudo quando pede para o advogado emendar a inicial e o complemento não vem. Nesse sentido, ele elogiou o voto recente do ministro do Superior Tribunal de Justiça Moura Ribeiro no Tema Repetitivo 1.198, que teve o julgamento suspenso por pedido de vista. O ministro explicou em seu voto que o objetivo principal da discussão é estabelecer em qual medida o juízo, antevendo a “natureza temerária” do processo, pode exigir da parte autora que apresente documentos capazes de confirmar a seriedade dos pedidos submetidos ao Judiciário.

Recentemente, a 12ª Câmara de Direito Privado do TJ-SP negou o benefício da Justiça gratuita porque a parte, embora tenha afirmado ser pobre, era representada por advogado contratado, não postulou no Juizado Especial e renunciou ao foro de sua comarca, direito que lhe é garantido pela legislação consumerista. Diz a decisão: “Se abriu mão de um benefício legal que lhe gera custos, não optou pelo Juizado Especial, e é capaz de pagar honorários advocatícios, dispensando a Defensoria Pública, deve pagar pelas despesas processuais. Pobres não renunciam a direitos; e se o fazem, devem suportar os custos de suas ações”, afirmou a desembargadora Sandra Galhardo Esteves em agravo dentro de uma ação declaratória de inexistência de débito (2298093-14.2022.8.26.0000).

“As redes predatórias têm um contorno que ocupa espaço, tempo e dinheiro do Tribunal de Justiça, que podia ser direcionado para a população que efetivamente necessita da prestação judicial. Ocupam tempo com demandas que não têm fundo, não têm base, ou que são puramente aventureiras. É uma coisa que realmente nos atrapalha”, resumiu Thiago Massad, presidente da Associação Paulista de Magistrados (Apamagis).

Contraponto

De acordo com Caio Augusto da Silva Santos, advogado e ex-presidente da seccional de São Paulo da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-SP), não se deve confundir advocacia predatória com advocacia de massa, coisas absolutamente diferentes.

“Há situações em que, para a proteção das pessoas, vamos ter um volume grande de demandas, por exemplo os pensionistas e aposentados do INSS. São pessoas simples e que precisam ter uma assessoria jurídica, uma advocacia especializada, que quando ajuíza a demanda, vai ajuizar demandas pulverizadas. A advocacia de massa precisa ser respeitada porque ela cumpre também um papel social.”

Segundo ele, isso é muito diferente de advocacia predatória: “São poucos os integrantes que acabam chamando muita atenção para isso e que acabam utilizando a advocacia como um instrumento absolutamente equivocado. São aquelas pessoas que ajuízam demandas, que usam procurações falsas, que fabricam demandas, e isso precisa ter realmente uma atenção e ser reprimido por todos os integrantes da família da Justiça. Mas nós não podemos fazer confusão, sob pena de desprotegermos uma camada muito importante da sociedade, que são as pessoas menos favorecidas, que vão estar ligadas sem dúvida alguma às chamadas demandas de massa”.

Contexto histórico

Jaime Rodrigues de Almeida Neto, do escritório Almeida Neto & Campanati, observa que esse aumento das demandas consumeristas decorre da Constituição de 88, que trouxe expressamente como direito fundamental a proteção ao consumidor.

“Isso incutiu na população um senso de cidadania e justiça que não existia, deu ao consumidor essa oportunidade de busca pelo Judiciário. O Código do Consumidor veio em seguida, em 1990, sendo uma normatização das mais modernas do mundo, e trouxe o consumidor como parte mais fraca da relação. As demandas de massa começaram a ser apreciadas pelo Poder Judiciário. O dano moral veio a reboque, diante de negativações indevidas, abusos nos contratos etc. Isso é uma consequência natural e acredito que o Poder Judiciário, na medida do possível, está sabendo, com o tempo, depurar.”

Para o advogado, a redução dos valores das indenizações por dano moral, promovida pela jurisprudência na tentativa de desestimular o enriquecimento sem causa, acabou tendo um efeito contrário na Justiça.

“A pretexto de não dar indenizações altas, o efeito contrário foi o incentivo para que grandes corporações acreditassem que uma ação judicial não vai custar caro para elas. Os punitive damages deveriam ser melhor pensados, pelo caráter pedagógico, o que no Brasil ainda não se aplica. As grandes demandadas começariam a pensar melhor no consumidor. É preciso inverter essa lógica de raciocínio do empresário.”

Fernando Capez, ex-secretário de Defesa do Consumidor e diretor do Procon, afirma que é preciso evitar ao máximo que as polêmicas cheguem até o Poder Judiciário.

“A área do consumidor padece desse grande problema que temos aqui no Brasil, que é a excessiva judicialização, uma contenciosidade que não tem limites, tudo vira uma polêmica jurídica, sobrecarregando o Judiciário e o tornando ao mesmo tempo inacessível. Não dá para um sujeito que comprou um liquidificador com defeito ser obrigado a entrar com uma ação na Justiça para ter a reparação do seu direito. A área administrativa, sobretudo, dos Procons tem o dever de estar preparada para resolver. Essa é uma grande contribuição, solução administrativa, imediata, compondo as partes e evitando que o Judiciário seja sobrecarregado em questões que possam ser resolvidas fora do âmbito do Judiciário.”

Fonte: Consultor Jurídico

Foto: Paulo César Rocha