Campo Grande, 18 de março de 2024
O relator do caso, ministro Reynaldo Soares da Fonseca, ressaltou que o Estatuto da Primeira Infância estabelece que o bem-estar da criança gerada deve ser uma prioridade absoluta.
O caso
Conforme a denúncia, o réu, então com 20 anos, passou a se relacionar com a vítima que, à época dos fatos, tinha apenas 12 anos. O acusado passou a buscar a adolescente na porta da escola, fazendo-a abandonar as aulas. Posteriormente, a vítima descobriu estar grávida.
Em 1º grau, ele foi condenado pela prática de estupro de vulnerável (artigo 217-A do Código Penal), à pena de 11 anos e 3 meses de reclusão em regime inicial fechado.A defesa recorreu da sentença, e o TJ/MG absolveu o acusado, entendendo que houve o chamado erro de proibição.
“Erro de proibição”, como se sabe, é uma situação em que uma pessoa comete um ato ilegal, mas não sabe que sua conduta é proibida por lei. Ou seja, o agente desconhece a ilicitude do fato, acreditando estar agindo dentro da legalidade. Esse desconhecimento pode ser total ou parcial e impacta diretamente na culpabilidade do agente.
O MP/MG recorreu então ao STJ buscando restaurar a condenação.
Em seu voto, o relator Reynaldo Soares da Fonseca enfatizou que uma criança com menos de 14 anos, de fato, não está em condições de ter um relacionamento amoroso, pois deve dedicar-se ao seu desenvolvimento educacional e lúdico.
Contudo, S. Exa. também ponderou que a vida transcende as leis e que a antecipação da fase adulta não deve causar mais danos, especialmente à criança gerada nessa união, que merece proteção absoluta.
O ministro enfatizou que, na ponderação dos valores, estaria diante da proteção integral da primeira infância, no caso o fruto da relação entre a criança de 12 anos e o rapaz de 20.
Assim, excepcionalmente, votou por negar provimento ao agravo regimental.
“Estamos aqui aplicando a jurisprudência, cuja exceção confirma a regra.”
A ministra Daniela Teixeira discordou e disse que o que ocorreu no caso foi estupro de vulnerável. “É pouco crível que o acusado não tivesse ciência da ilicitude da sua conduta.”
“Não se pode, racionalmente, aceitar que um homem de 20 anos de idade não tivesse a consciência da ilicitude de manter relação sexual com uma menina de 12 anos. Não se trata, o agressor, do ‘matuto’ exemplificado nas doutrinas de Direito Penal, ou do ermitão que vive totalmente isolado da sociedade, sem qualquer acesso aos meios de comunicação ou à sociedade. Ademais, aceitar a incidência de tal excludente de tipicidade sem comprovação inequívoca de seus requisitos, em especial em crimes de natureza sexual contra crianças e adolescentes, pode resultar na definição da responsabilidade penal do ato a partir de uma avaliação subjetiva do agente sobre o corpo da vítima, o que é inadmissível dentro da doutrina constitucional da proteção integral (artigo 227 da Constituição Federal).”
A ministra destacou que a gravidez representou uma segunda agressão à vítima, que teve seu futuro comprometido.
“O fato de terem um relacionamento ‘amoroso’ apenas reforça a situação de violência imposta à adolescente, que deve ser protegida pelo Estado até mesmo de suas vontades. Ninguém acharia ‘lícito’ dar a ela bebida alcoólica ou substância entorpecente apenas porque ‘manifestou vontade’.”
Assista a trecho do voto:
Os ministros Ribeiro Dantas e Joel Ilan Paciornik acompanharam o relator, enquanto Messod Azulay seguiu o voto da ministra Daniela.
Ribeiro Dantas, em ilustrado voto, observou que há casos em que nenhuma solução contenta todos os pontos de vista. E o caso dos autos seria um deles. Tanto o encarceramento poderia ser excessivo, como seria ruim a mensagem de absolvição transmitida à sociedade. Nessa ponderação, entendeu por acompanhar o relator, enfatizando ser uma exceção.
Ministro Joel, por seu turno, também acompanhou o relator, observando que era a solução adequada, a partir do cotejo dos princípios.
Encerrando o julgamento, ministro Messod votou por seguir a súmula da Corte, asseverando que a presunção no caso é absoluta.
Regras e exceções
Sob as regras do Código Penal brasileiro, especificamente no artigo 217-A, qualquer relação sexual com menores de 14 anos é classificada como crime, independente do consentimento da vítima ou de seu passado sexual. O Superior Tribunal de Justiça, reafirmando essa norma, consolidou sua posição através da Súmula 593.
Entretanto, a Corte tem mostrado flexibilidade em casos excepcionais, optando pela atipicidade quando acredita que isso não beneficiaria a sociedade.
Ocorre que, neste caso, acendeu-se na turma um debate a respeito dessa abordagem. A ministra Daniela Teixeira, divergindo, argumentou pela necessidade de eliminar essa margem de interpretação flexível. Ela defende um padrão de proteção intransigente aos menores de 14 anos, classificando qualquer ato sexual com eles como estupro de vulnerável: “o conceito penal de vulnerabilidade tem natureza absoluta e não comporta relativização”.
Por outro lado, o ministro Reynaldo Soares da Fonseca, cuja opinião prevaleceu, argumentou que, em certas circunstâncias, condenar o réu a no mínimo oito anos de prisão poderia ter consequências mais prejudiciais.
Processo: AREsp 2.389.611
Fonte: Portal Migalhas