Danieli Tinoco de Aquino
Faculdade INSTED[1]
RESUMO: A sociedade contemporânea vislumbra modelos de conduta de convívio social muito distantes dos estabelecidos por meio de contrato social. Por isso, as instituições prisionais encontram abarrotadas sem perspectivas reais de soluções de reingresso na sociedade. Sendo assim, o presente artigo buscou apresentar as práticas desenvolvidas por meio da ressocialização no Estabelecimento Penal de Ivinhema, demostrando os resultados de forma técnica. O fato de dois pesquisadores comporem a área de Segurança Pública/Policiais Penais, e de se encontrarem lotados durante o recorte temporal apresentado na presente pesquisa, facilitou para que os estudos, etapas, compilação dedados e materiais. A metodologia utilizada foi a etnográfica, com uso dos dados contidos nos arquivos da instituição, aplicando meios quantitativos e qualitativos. Foi possível identificar as mais diversas reações aos estímulos implantados, tais como: o método CIS (curso de inteligência emocional); remição pela leitura; o concurso de desenho e redação – Secretaria de Estado de Fazenda; a atividade laboral com quebra-cabeças; o artesanato (confecção das peças desenvolvidas manualmente); a ênfase ao trabalho desenvolvido por meio da fé e espiritualidade durante a COVID-19. Os resultados obtidos mostraram o alto grau de mudanças nos comportamentos dos custodiados acompanhados, propiciando uma análise detalhada para aprimorar o reingresso à sociedade.
PALAVRAS-CHAVE: Práticas Norteadoras, Habilidades, Ressocialização, Sociedade
INTRODUÇÃO: Aspectos Contemporâneos
O uso dos recursos tecnológicos contemporâneos tornou-se primordial no processo de inclusão não apenas no mercado de trabalho, mas no convívio familiar, entre amigos, nas redes sociais. Concomitantemente, as habilidades consideradas individuais, ou seja, aquela oriunda exclusivamente de respostas cognitivas está sendo substituídas por ferramentas tecnológicas.
Todavia, as limitações binárias das tecnologias esbarram nas decisões humanas concebidas a partir de reações químicas, físicas e biológicas. A racionalidade dos programas tecnológicos tem confrontado constantemente a capacidade humana de tomar decisões. Tais decisões, mesmo contextualizadas com a capacidade de processamento das informações, demandam um entendimento e desenvolvimento com base nos conhecimentos adquiridos pelo indivíduo e ratificados especificamente no momento decisório.
Contudo, estas perspectivas denotam um entendimento peculiar quando são atribuídas às pessoas privadas de liberdade. Ao delimitarmos a amostragem para observação dos apenados em nível nacional, fica evidente o imenso campo de pesquisa no que tange às práticas de desenvolvimento das habilidades humanas dentro das prisões. Logo, ao reduzirmos o campo de amostragem para uma unidade prisional do Estado de Mato de Grosso do Sul, manteremos dentro dos aspectos metodológicos a validade do presente estudo.
Nessa linha, os estudos seguiram um padrão de pesquisa com o intuito de validação dos resultados obtidos. Primeiramente, foram feitas pesquisas em banco de dados de revistas científicas, anuários, banco de dados de órgãos públicos, com a finalidade de ratificar por meio de um referencial teórico, a finalidade da pesquisa, juntamente com o objeto principal do estudo.
Após a conclusão do referencial teórico, foi desenvolvido todo o contexto envolvendo pesquisas in loco, com o objetivo de obter o maior número possível de informações das ações desenvolvidas no Estabelecimento Penal de Ivinhema – EPMRFI, dentro do que foi estabelecido nos objetivos específicos do presente artigo.
Após todo o processo de coleta dos dados e informações pertinentes, foi possível a compilação dos resultados obtidos, tanto nos aspectos quantitativos quanto qualitativos. Na conclusão do presente artigo, foram expostos aspectos tanto positivos quanto negativos da referida pesquisa, de forma a estimular os leitores a compreenderem as demandas existentes neste ambiente tão mistificado pela sociedade.
DESENVOLVIMENTO:
Sistema Penitenciário no Estado de Mato Grosso do Sul
O Sistema Penitenciário do MS foi criado por meio do Decreto nº 26 em 01 de janeiro de 1979, denominado inicialmente no Departamento do Sistema Penitenciário (DSP), conforme descrito abaixo:
Estabelece a competência, aprova a estrutura básica do Departamento do Sistema Penitenciário de Mato Grosso do Sul (DSP), e dá outras providências.
Art. 1º O Departamento do Sistema Penitenciário de Mato Grosso do Sul (DSP) é uma entidade autárquica, vinculada à Secretaria de Justiça e por ela supervisionada, com personalidade jurídica de direito público, patrimônio próprio, autonomia administrativa e financeira, sede e foro na Capital do Estado. (MATO GROSSO DO SUL, Diário Oficial nº 01, de 01 de janeiro de 1979, p. 152)
Em seu Artigo 2º, diz:
O DSP tem como finalidade custodiar os presos provisórios, executar as penas de prisão e as medidas de segurança detentivas, amparar os egressos e exercer a observação cautelar dos beneficiários da suspensão e livramento condicionais, administrando os estabelecimentos prisionais. (MATO GROSSO DO SUL, Diário Oficial nº 01, de 01 de janeiro de 1979, p. 152)
Ao analisar os textos normativos anteriores, percebemos a complexidade deste Departamento e suas finalidades em um período anterior a Lei de Execução Penal (LEP) de 1984 e à Constituição Federal de 1988. O papel de custodiar, executar penas, amparar os egressos são as diretrizes básicas estabelecidas em sua fundação. No entanto, ao lermos na integra o texto normativo do Decreto, não vislumbramos o emprego da palavra “ressocialização”.
O Art. 3º em seu V inciso diz:
Desenvolver, através do emprego da mão de obra carcerária, atividades produtivas, de sorte a eliminar a ociosidade entre os presos, possibilitando reduzir o custeio do Estado com o seu sustento e permitindo-lhes fonte de receita para gastos pessoais e com a família e indenizações motivadas pelo crime cometido. (MATO GROSSO DO SUL, Diário Oficial nº 01, de 01 de janeiro de 1979, p. 152)
Logo, podemos identificar no referido dispositivo, que os contextos iniciais de uma ação estratégica de ressocialização dos reeducandos apresentavam como objetivo precípuo a retirada do indivíduo da ociosidade de modo a reduzir as despesas para o setor público, sem mensurar aspectos de sua reinserção na sociedade.
No entanto, com a promulgação de Lei de Execução Penal de 1984, a assistência ao preso adquiriu um novo escopo. Em seu Art. 10º a LEP (1984) enuncia que “A assistência ao preso e ao internado é dever do Estado, objetivando prevenir o crime e orientar o retorno à convivência em sociedade”.
A inclusão da atribuição de orientação ao convívio em sociedade permitiu que as ações descritas neste artigo pudessem ser desenvolvidas.
Corroborando com o pressuposto descrito acima, foi publicado no ano de 2006, por meio de Decreto o Regimento Interno Básico das Unidades Prisionais do Estado de Mato Grosso do Sul (RIBUP). O aludido Regimento no art. 10, inciso I estabeleceu como objetivo: “possibilitar, por meio de tratamento penal adequado e individualizado oportunidade aos presos nele recolhidos, de reintegração ao convívio social”. Neste Decreto foi organizado as devidas competências de seus gestores para promulgar o desenvolvimento de assistência aos reeducandos. O RIBUP (2006) diz:
XIX – providenciar à unidade de assistência social, condições de alfabetização, escolarização e aperfeiçoamento educacional dos presos;
XX – facilitar a assistência religiosa sem qualquer discriminação de credo ou religião, devendo encaminhar à Unidade de Assistência Social os responsáveis para cadastro e identificação. (MATO GROSSO DO SUL, RIBUP,2006)
Como se infere da análise do texto normativo do Regimento Interno Básico das Unidades Prisionais do Estado de Mato Grosso do Sul (RIBUP), este foi estabelecido com base nos parâmetros estabelecidos na Lei de Execução penal, apresentando como escopo básico a criação de possibilidades para o desenvolvimento de atividades inerentes à reinserção do reeducando na sociedade a partir dos estímulos internos proporcionados pelos projetos ressocializadores.
Estabelecimento Penal de Regime Fechado de Ivinhema – EPMRFI – Aspectos gerais
O Estabelecimento Penal de Regime Fechado de Ivinhema – EPMRFI foi criado pelo Decreto nº 14.736, de 15 de maio de 2017, publicado no Diário Oficial de Estado de Mato Grosso do Sul nº 9.409, de 16 de maio de 2017, iniciando suas atividades de transição de estrutura tanto física quanto profissional, haja vista, que o prédio público estava sendo utilizada para as devidas atribuições funcionais da Policia Civil local. Seguindo um projeto de custódia exclusiva dos apenados pelo Sistema Penitenciário, a transição foi concluída em meados de 2018.
A pesquisa para elaboração deste artigo ocorreu, a presente pesquisadora estava lotada na Unidade Penal e participava diretamente dos projetos que serão elencados posteriormente. A unidade penal neste processo de transição e reforma entre os anos de 2020 e 2022 manteve sempre uma média de 55 (cinquenta e cinco) e 70 (setenta) reeducandos alojados em 06 (seis) celas em pavilhão único.
Aspectos Teóricos do Desenvolvimento Humano
De fato, podemos afirmar que comparado aos grandes complexos prisionais existentes no Estado, o quantitativo de apenados no Estabelecimento Penal de Regime Fechado de Ivinhema – EPMRFI é considerado pequeno. Contudo, a ótica da pesquisadora deve manteve-se limitada aos pressupostos técnicos de condições mínimas básicas de alojamento de indivíduos em ambientes prisionais.
Para tanto, tomou com eixo norteador os parâmetros estabelecidos nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável elaborados e lançados pela Organização das Nações Unidas (ONU) a chamada “Agenda 2030” que constituí um plano de ação sobre o futuro do planeta e da humanidade dividido em 17 objetivos e 169 metas.
Nesse sentido, o objetivo 16 com a denominação de Paz, Justiça e Instituições Eficazes está descrito da seguinte forma:
Objetivo 16. Promover sociedades pacificas e inclusivas para o desenvolvimento sustentável, proporcionar o acesso à justiça para todos e construir instituições eficazes, responsáveis e inclusivas em todos os níveis. 16.1 Reduzir significativamente todas as formas de violência e as taxas de mortalidade relacionada em todos os lugares. 16.a Fortalecer as instituições nacionais relevantes, inclusive por meio da cooperação internacional, para a construção de capacidades em todos os níveis, em particular nos países em desenvolvimento, para a prevenção da violência e o combate ao terrorismo e ao crime. (ONU, AGENDA2030,2015)
Diante deste compromisso assumido pelo Brasil na chamada “Agenda 2030”, a priori, temos o entendimento de que necessitamos colocar em prática ações específicas de desenvolvimento das habilidades humanas para obtermos os resultados positivos almejados. No entanto, entre o teoricamente recomendado e os resultados práticos esbarramos com inúmeras dificuldades, tanto nos aspectos humanos quanto no organizacional.
Com relação aos aspectos humanos, verifica-se dificuldade de engajar os profissionais responsáveis pelo desenvolvimento de projetos e atividades de ressocialização. Quando se trata dos aspectos organizacionais, envolve o incentivo na captação de recursos necessários para implantação dos projetos. Remetendo a realidade local, as condições adversas não divergem das hipóteses descritas.
Contudo, entre os anos de 2021 e 2022, obtivemos resultados mensurais em 03 (três) áreas: labor, fé e educação. Santos Jr (2018) em sua dissertação de mestrado sobre o papel da economia criativa como ferramenta de ressocialização de internos aponta o papel humano no processo decisório de manter sua condição atual.
A racionalidade humana encontrou formas de moldar suas pulsões por meio do labor, da educação e da fé, sendo que, independente das circunstâncias o indivíduo obtendo um princípio de liberdade acaba agindo e tomando decisões irracionais, no que tange o convívio em sociedade. Em contrapartida, o estado repousa em suas ações, o direito da utilização da força física como uma nova forma de ocorrer a repressão dos impulsos humanos. (SANTOSJR,2018, p.81)
A natureza humana precisa controlar as suas pulsões. Para o autor, embora as prisões restrinjam a liberdade do indivíduo, são apresentadas pelo Estado como uma forma como uma forma de controle dos impulsos irracionais. Não devemos nos ater ao método de recrutamento, no entanto, compilar os resultados obtidos por aqueles em que foram aplicados. Conforme a sequência descrita na citação anterior, labor tem sua devida importância relatada por Arendt (2007) quando diz:
A produtividade do trabalho é medida e aferida em relação as necessidades do processo vital para fins da própria reprodução; reside no excedente potencial inerente a força de trabalho humana e não na qualidade ou caráter das coisas que produz. (Arendt 2007, p.105)
Ao analisar o ponto de vista da autora citada acima, podemos concluir que o labor possui um papel específico de produzir algo para alguém mediante um acordo entre as partes. A princípio, os termos acordados seguem os princípios básicos da vontade humana, já que nenhuma das partes aceitou o acordo mediante um desejo involuntário.
Contudo, numa sociedade contemporânea imediatista e exploratória, seria pueril considerar que não exista outras vontades estabelecidas e não declaradas pelos indivíduos. E se considerarmos que em um ambiente prisional, o labor ofertado, em sua maioria, está distante do desejado pelo apenado; qual seria então a melhor forma de estimular suas habilidades humanas? Freud (1996) aponta 03 (três) medidas que o indivíduo recorre nos momentos mais complexos do modo de vida em sociedade:
A vida, tal como a encontramos, é árdua demais para nós; proporcionamos muito sofrimento, decepção e tarefas impossíveis. A fim de suporta-las, não podemos dispensar as medidas paliativas. Não podemos passar sem construções auxiliares. Existem talvez três medidas desse tipo: derivados poderosos, que nos fazem extrair luz de nossas desgraças; satisfação substitutivas que a diminuem; e substancias toxicas que nos tornam insensíveis a ela. (FREUD 1996, p.8)
Em uma análise empírica, numa hipótese não compilada, o perfil de determinados internos pode estar relacionado à busca por um modo de vida adverso ao real, conforme a citação anterior. Contudo, os mecanismos de busca para a solução paliativa dos problemas começam anteriormente as suas prisões. Nessa sociedade contemporânea capitalista, o despertar pela busca do sucesso e conquista contínua esbarra no limite da capacidade humana de absorver os desgastes ocorridos nessa senda interminável.
Portanto, tornar-se dependente de algo que temos a consciência de sua ação destrutiva, fomenta a necessidade de uma nova ferramenta de cura interna do indivíduo por mecanismos tangíveis, mas que adentre ao mundo humano e sua vida psíquica. Freud (1996) propõe a religião como uma alternativa, quando diz:
A religião restringe esse jogo de escolha e adaptação, desde que impõe igualmente a todos o seu próprio caminho para a aquisição da felicidade e da proteção contra o sofrimento (FREUD, 1996, p.14).
Freud (1996) relata que a religião pode atingir resultados mensuráveis no resgate do indivíduo, ao propor um padrão de conduta humana que estabeleceria uma modelo de felicidade com base na crença da pessoa. Ao relacionar ao Sistema Prisional, o entendimento da importância do acesso a assistência religiosa no controle do comportamento da massa carcerária, Murad (2020) em artigo publicado sobre o tema afirma:
A assistência religiosa, quando realizada de acordo com os dispositivos legais, permite o exercício da autonomia, mediante a liberdade religiosa e o reconhecimento de aspectos da subjetividade e de pertencimento a um grupo social. A assistência religiosa não pode configurar-se como única forma de assistência oferecida em um estabelecimento prisional. É preciso considerar que a reintegração social envolve todas zs outras assistências previstas na LEP, que só é viabilizada a partir de diversas políticas públicas (MURAD,2020, p.349)
E ratifica ao concluir:
A assistência religiosa é uma das formas de garantir liberdade de escolha na condição de encarceramento, de o sujeito permitir o exercício de sua individualidade em um ambiente que por si é massificado, uniformizado, padronizado. Por isso, cada estabelecimento prisional tem que primar pela institucionalização da pluralidade e diversidade religiosa, aspecto que deve se concretizar a partir do protagonismo estatal para o alcance desse objetivo, já que, na prática, isso não se tem operacionalizado devidamente. (MURAD,2020, p.350)
A partir dos princípios elencados neste artigo, correlacionando os pressupostos laborais e religiosos nos aspectos do desenvolvimento humano e no controle de suas pulsões, estes apresentam-se como um potencial ferramenta a ser explorada nas instituições penais, mantendo seus objetivos iniciais. Ao associarmos com as pesquisas feitas nas ações desenvolvidas na Penitenciaria de Ivinhema, pretendemos dimensionar os impactos no comportamento dos indivíduos.
A compreensão completa dos controles das pulsões humanas com o despertar de suas potencialidades demanda entendermos o papel da assistência educacional e sua capacidade de transformação do indivíduo, em ambiente prisional. Não podemos ignorar que as ações ofertadas no contexto educacional atingem o público alvo nas metas almejadas, desde que haja predisposição do apenado em participar das ações. Onofre (2011), corrobora com a afirmativa, quando diz:
É preciso afastar-se, no entanto, de qualquer postura ingênua em relação ao papel da escola dentro do sistema prisional, mas não há como negar que, nesse espaço, o homem busca a sua identidade e o diálogo, reconstrói a sua história e valoriza os momentos de aprendizagem, tendo, portanto, o direito a uma escola competente, produtiva e libertadora”. (ONOFRE, 2011, p. 277).
Ao analisarmos o posicionamento de Onofre (2011), compreendemos que os cânones racionais de aplicação e desenvolvimento das ações, podem gerar resultados, desde que sejam seguidos os preceitos de competência, produção e libertação. Contudo, para que haja compreensão dos fenômenos, devemos observar os aspectos não mensuráveis do indivíduo, por meio da assistência educacional nas unidades penais. Freud (1996) propõe a compreensão dos aspectos não mensuráveis.
Assim, acaba-se por aprender um processo através do qual, por meio de uma direção deliberada das próprias atividades sensoriais e de uma ação muscular apropriada, se pode diferenciar o que é interno – ou seja, que pertence ao ego – e o que é externo – ou seja, que emana do mundo externo. Desse modo dá-se o primeiro passo no sentido da introdução do princípio da realidade, que deve dominar o desenvolvimento futuro. Essa diferenciação, naturalmente, serve à finalidade prática de nos capacitar para a defesa contra sensações de desprazer que realmente sentimos ou pelas quais somos ameaçados. (FREUD 1996, p.4)
A escolha de uma estratégia eficaz no desenvolvimento de projetos e ações voltadas a ressocialização dos reeducandos depende de encadeamento, ambientes, pessoas e suas crenças. Para isso, o modelo implantado deve transpor os padrões vigentes e nortear-se por uma flexibilidade que considere a subjetividade de cada indivíduo em sua dignidade humana.
Métodos e Atividades Desenvolvidas no Estabelecimento Penal de Regime Fechado de Ivinhema – EPMRFI
As ações desenvolvidas na Unidade Penal de Ivinhema, que são objeto deste estudo, tiveram a participação direta da pesquisadora, haja vista que, entre os anos de 2019 e 2022 estava lotada na referida instituição. Dessa forma, buscou-se identificar um padrão metodológico que validasse sua imersão no ambiente e sua interação com as pessoas assistidas pelas ações desenvolvidas.
Sendo assim, além dos processos específicos de coleta e análise dos dados, o trabalho seguiu a metodologia de pesquisa etnográfica. Também como suporte as pesquisas fizeram o uso de forma complementar, de arquivos internos acompanhados de pesquisas bibliográficas, com objetivo de atender todo o suporte metodológico necessário.
Nesse sentido, é útil ao leitor um entendimento conciso da pesquisa etnográfica. Geertz (1989) define como:
Segundo a opinião dos livros-textos, praticar a etnografia é estabelecer relações, selecionar informantes, transcrever textos, levantar genealogias, mapear campos, manter um diário, e assim por diante. Mas não são essas coisas, as técnicas e os processos determinados, que definem o empreendimento. O que o define é o tipo de esforço intelectual que ele representa: um risco elaborado para uma ‘descrição densa’, tomando emprestada uma noção de Gilbert Ryle (Geertz 1989: 15).
Mantendo a linearidade do desenvolvimento textual, abordaremos inicialmente as ações desenvolvidas nos aspectos laborais. Como vimos anteriormente, labor difere de trabalho e busca despertar as potencialidades dos indivíduos naquilo que os mesmos já possuem de habilidades individuais. Neste sentido, em 2019, de forma experimental, foram repassados aos apenados de Ivinhema-MS, Jogos de Quebra-Cabeças alusivos a obras de arte de artistas renomados.
A Atividade laboral com quebra cabeças citada acima, buscou identificar de que forma poderia contribuir na melhoraria de suas habilidades cognitivas em que fosse possível mensurar resultados em sua agilidade mental, estímulo ao raciocínio, criatividade e consequentemente permitindo que eles tenham acesso as imagens alusivas obras de artes.
A figura 2, mostra a exposição de quadros confeccionados pelos internos em exposição no Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso do Sul, localizado na cidade de Campo Grande – MS. No período em que o Projeto foi executado, foram confeccionados em torno de 40 (quarenta) quadros alusivos a obras de artes que foram expostos nos mais diversos órgãos públicos, tais como, escolas municipais e agrícolas, aeroportos e universidade particular.
As atividades voltadas ao desenvolvimento humano, com o acesso a assistência religiosa, fomentaram ações aptas a permitirem que os apenados mantivessem contato com suas crenças e fé. Principalmente no período pandêmico, época em que a entrada dos agentes religiosos ficou praticamente impedida, foi necessário a implantação de novas ações internas que proporcionassem o exercício da fé e do conforto espiritual aos reeducandos.
A figura 3 mostra o momento em que juntamente com os Policiais Penais, Profissionais da Educação e Agentes Religiosos ministram e participam de culto religioso aos reeducandos da Unidade de Ivinhema-MS. Acompanhado deste atendimento presencial, foram desenvolvidas ações em que os internos recebiam gravações de áudio que eram reproduzidos dentro do pavilhão de forma a alcançar todos os internos da Unidade Penal.
Contudo, a compreensão integral do tripé do controle das pulsões humanas que impulsionam o desenvolvimento das habilidades humanas em ambiente prisional, demanda ações no universo educacional. O Estado tem a responsabilidade de atender os apenados com o acesso aos diversos níveis educacionais. Ao retratarmos a unidade penal de Ivinhema-MS, a presente pesquisadora teve a iniciativa de incluir nas ações educacionais, atividades externas voltadas ao desenvolvimento do indivíduo, com a aplicação do Método CIS.
O Método CIS é um curso de inteligência emocional desenvolvido e ministrado pelo PhD Paulo Vieira, que busca em suas pesquisas discutir todas as áreas que envolvem o comportamento humano, com a finalidade de fomentar os contextos atuais, de forma que a pessoa possa ter ferramentas que contribuam na avaliação das perdas e ganhos por meio da autorresponsabilidade.
De todas as ações implementadas, aquela que abrangeu um resultado direto e efetivo partiu de um ambiente educacional. Estes resultados foram constatados no momento em que os reeducandos puderam expor suas opiniões pessoais, com a finalidade de compreendermos o nível de absorção dos mesmos. Em relatos escritos manualmente, ao serem analisados qualitativamente permitiram a pesquisadora analisar o impacto imediato no comportamento dos internos e suas perspectivas atuais e futuras. Exemplificando o parágrafo anterior, segue abaixo, uma das aplicações desenvolvidas com os internos.
Justiça Restaurativa nos moldes do ambiente prisional
Ao delinearmos os pressupostos dos aspectos do desenvolvimento humano fomentados neste artigo, encontramos na Justiça Restaurativa (JR), ideias que podem contribuir no despertar do indivíduo.
Brito (2014) descreve sua origem:
As ideias sobre a Justiça Restaurativa (JR) têm sua origem há mais de três décadas. Os primeiros registros foram verificados nos Estados Unidos em 1970 sob a forma de mediação entre réu e vítima, depois adotadas por outros países, com destaque para a experiência da Nova Zelândia. Também Chile, Argentina e Colômbia dão os primeiros passos em direção a Justiça Restaurativa. No Brasil, registram-se experiências isoladas, como a da 3ª Vara do Juizado da Infância de Porto Alegre, iniciada em 2002. (BRITO,2014, p.2)
O modelo de justiça retributiva centrado no cerceamento da liberdade, como mera punição, diverge da diretriz básica da Justiça Restaurativa, que é a restauração do vínculo do reeducando com a comunidade. Logo a Justiça restaurativa propõe um novo entendimento, que supera a ideia de punição para buscar a reabilitação em um nível mais profundo, ou seja, na cura do vínculo do reeducando com a sociedade. Toews (2019) afirma:
A abordagem da Justiça Restaurativa é diferente da abordagem da justiça criminal. Seguramente ambas buscam a responsabilização, mas cada uma possui o entendimento distinto acerca do que isto seja. (TOEWS,2019, p.12)
E conclui
A justiça restaurativa entende responsabilização como uma forma de lidar com as necessidades das pessoas e de consertar o que está errado. Ao invés de focar principalmente na punição do ofensor, a responsabilização está focada nas necessidades das vítimas, bem como nas necessidades e obrigações de quem causou o dano, de seus familiares e das comunidades. (TOEWS,2019, p.12)
Diante disso, pode-se afirmar a viabilidade Justiça Restaurativa como grande aliada nas práticas ressocializadoras no âmbito prisional, tendo em vista seu foco nos princípios da relacionalidade, da interconectividade das relações sociais e, assim, no engajamento da comunidade. Ela estimula a consciência e a assunção da responsabilidade pelo autor do ilícito em relação às consequências do fato cometido, e, além disso, ainda visa à reparação da vítima e da comunidade na busca pela restauração das relações sociais esgarçadas durante a prática do crime.
Contudo, o ressarcimento material não é seu objetivo principal; mas, sim, a construção de meios alternativos mais amplos para o entendimento sobre a necessidade de uma reparação mais profunda das relações sociais adoecidas, mormente da cura do vínculo social do ofensor com a vítima, bem como dos vínculos adoecidos no ambiente familiar e na comunidade em que estão inseridos.
CONCLUSÃO:
O propósito do presente artigo buscou identificar de que forma as práticas consideradas norteadoras das habilidades humanas poderiam contribuir para as mudanças de comportamento de indivíduos em ambiente prisional. Sendo assim, foram analisados os reeducandos assistidos no Estabelecimento Penal de Regime Fechado de Ivinhema-MS, entre os anos de 2019 e 2022, que tiveram acesso as ações nas esferas laborais, religiosas e educacionais.
Os resultados obtidos demonstraram a importância do atendimento direto aos reeducandos em todas as esferas. Ao abordarmos as atividades laborais, conclui-se que toda ação planejada e aplicada ao público alvo da pesquisa, apresentou resultados positivos naquele grupo. Essa experiência demonstra que o olhar do gestor deve estar direcionado à pessoa e não aos motivos que a levaram a estar preso.
A Assistência Religiosa, como um dos pilares importantes da ressocialização, contribuiu para momentos de paz e tranquilidade, com destaque ao fortalecimento da fé no período pandêmico. Assim, reitera-se o papel do gestor no estímulo de ações contínuas para a assistência religiosa, com o fortalecimento estrutural no atendimento aos agentes religiosos juntamente com os reeducandos.
No que concerne às ações educacionais, ratifica-se a importância da continuidade não apenas dos ensinos básicos fornecidos pelo Estado, assim como, o estímulo a projetos complementares seguindo o exemplo do método CIS descrito neste artigo. E por último, foi abordado o papel da Justiça Restaurativa como recurso contemporâneo para a restauração mais profunda dos vínculos sociais esgarçados pelos conflitos entre ofensor e vítima.
O papel do Estado é proporcionar alternativas de ressocialização ao indivíduo que venham a cumprir pena em seus estabelecimentos penais, de forma que, não voltem a cometer novos delitos. E nesta busca para promover a sensação de pertencimento à sociedade, é necessária a geração de estímulos motivacionais nos momentos mais difíceis da pessoa humana que está cerceada de sua liberdade, levando-se em consideração as suas necessidades multidimensionais, ou seja, biológicas, afetivas, intelectuais e espirituais.
Assim, essas pessoas de fato terão acesso a oportunidades de renovo e mudança de comportamentos, mesmo em ambientes considerados irrecuperáveis. Isso é o sentido mais profundo da justiça. É gratificante.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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TOEWS, B. Justiça Restaurativa para pessoas na prisão. São Paulo: Palas Athena, 2019.
Danieli Tinoco de Aquino
Raquel Domingues do Amaral[2]
Leoncio Elidio dos Santos Junior[3]
[1] Danieli Tinoco de Aquino é estudante do curso de Direito no INSTED. E-mail: danielitinoco@hotmail.com
[2] Raquel Domingues do Amaral é professora do curso de Direito. Juíza Federal de Direito E-mail: rdamaral2013@gmail.com
[3] Leoncio Elidio dos Santos Junior, Policial Penal. Mestre em Desenvolvimento Regional e de Sistemas Produtivos pela Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS). E-mail:leoncioj29@gmail.com