Thiago Gomes
Apontado como uma das grandes inovações para o processo penal brasileiro, a implantação do juiz de garantias está a caminho da realidade. Uma inovação trazida pelo chamado “Pacote Anticrime” a ferramenta deverá ser criada por todos os tribunais. Isso porque o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que a alteração no Código de Processo Penal (CPP) que instituiu o juiz de garantias é sim uma medida constitucional.
Para o colegiado, as regras, introduzidas pelo Pacote Anticrime (Lei 13964/2019), são uma opção legítima do Congresso Nacional visando assegurar a imparcialidade no sistema de persecução penal. O entendimento foi de que, como a norma é de processo penal, não há violação do poder de auto-organização dos tribunais, pois apenas a União tem competência para propor leis sobre o tema.
Com a decisão ficou estabelecido que a regra é de aplicação obrigatória, entretanto, caberá aos estados, o Distrito Federal e a União definir o formato em suas respectivas esferas. O entendimento da Suprema Corte, em pelo menos quatro Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs 6298, 6299, 6300 e 6305), dá prazo de 12 meses, prorrogáveis por outros 12, para que leis e regulamentos dos tribunais sejam alterados para permitir a implementação do novo sistema a partir de diretrizes fixadas pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). O prazo começará a contar a partir da publicação da ata do julgamento, o que ainda não aconteceu.
Por conta da decisão do STF, o juiz Carlos Alberto Garcete, da 1ª Vara do Tribunal do Júri de Campo Grande e um estudioso do tema, falou sobre o assunto e os benefícios que deve trazer. Em síntese, o juiz das garantias deverá atuar apenas na fase do inquérito policial e será responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais dos investigados. A partir do oferecimento da denúncia, a competência passa a ser do juiz da instrução.
O magistrado explicou que o juiz de garantias segue um modelo implantado já há muito tempo, em muitos países que tem comprometimento com o estado democrático de direito. Na prática, segundo ele, “o seu objetivo é ter uma figura de um juiz que atue exclusivamente na investigação criminal, quando é ainda a fase que há pedidos de cautelares como prisão temporária, prisão preventiva, busca e apreensão, quebra de dados, etc., e esse juiz fica limitado a esta fase investigativa do processo. Posteriormente, quando essa investigação eventualmente transforme-se em ação penal de fato, que aí já se judicializa, vira uma ação penal, já tem réu, aí é outro juiz que vai atuar”.
CONTAMINAÇÃO
“Ai você me pergunta: qual a diferença disso, o resultado disso? Percebeu-se nos países mais civilizado que o juiz que atua desde a fase investigativa do processo, autorizando medidas cautelares, e depois ele é o mesmo juiz que lá na frente é responsável por fazer a instrução do processo e julgar, já vem contaminado na sua convicção pelas mesmas medidas que autorizou anteriormente. Por exemplo, se na fase de investigação determinou a prisão de várias pessoas ele tem uma tendência a reafirmar aquilo que já fez antes, vai ter uma tendência favorável à acusação, a receber a denúncia do Ministério Público, pelo fato do efeito contaminação”, esclareceu.
“Eu cito na minha tese (de doutorado em Direito Processual Penal) a teoria da dissonância cognitiva. Pela psicologia é quando ela firma o “efeito perseverança”, ou seja, o ser humano quando firma uma posição em qualquer sentido, ele tem uma tendência muito difícil de rever o seu ponto de vista. É a Teoria da reafirmação. Por exemplo, pesquisa realizada com juízes na Alemanha, com a utilização de um processo simulado, demonstrou que os juízes que tiveram contato prévio com as investigações apresentaram, estatisticamente, tendência a condenar. Já aqueles que não tiveram contato e que receberam a missão de analisar tiveram a tendência a 50% condenar e 50% absolver, meio a meio, um equilíbrio, e isso mostrava que inexistia o efeito contaminação”, esclareceu Garcete.
IMPARCIALIDADE
No STF, a ministra Rosa Weber, na época presidente da Corte, afirmou que o direito ao juiz imparcial é uma garantia prevista na Constituição Federal e em convenções internacionais das quais o Brasil é signatário. Segundo ela, a obrigação do Estado passa pela criação de normas para inibir a atuação do magistrado em situações que comprometam ou aparentem comprometer sua imparcialidade.
Nessa linha, conforme o juiz de Campo Grande, é por isso que se luta para implantar (o juiz de garantias) no Brasil. “Ainda há, por outro lado, muita resistência da própria magistratura. Primeiro, sempre vai pro lado da falta de estrutura. Mas a falta de estrutura não pode ser usada como óbice, como pretexto, para não implantar evolução de direitos. A falta de estrutura deve sempre ser trabalhada de um modo geral, não como justificativa. Quando tem uma necessidade você precisa buscar meios de viabilizar isso e não colocar como pretexto para estagnação de direitos”, destacou Garcete.
Outra resistência que se coloca é que o juiz não interesse em condenar e prejudicar ninguém. “Mas quando a gente faz um aprofundamento nessas pesquisas, ninguém está dizendo que o juiz condena mais por má fé. É claro que o juiz está sempre bem intencionado. O que se está colocando é o efeito da contaminação de ter atuado antes no mesmo processo. Não que ele faça isso conscientemente. Ninguém está entrando na seara de má fé ou boa fé. A intenção com essa ferramenta é apenas evoluir, dar um salto de qualidade no processo acusatório”, cita.
E sobre o suposto ônus de ter dois juízes atuando? “Foi um dos maiores óbices citados nas ações diretas. O juiz de garantias foi implantado junto com o Pacote Anticrime. Depois disso ingressaram com várias ações de diretas de inconstitucionalidade, todas elas atacando a medida e pedindo a sua declaração de inconstitucionalidade. Presidentes do STF na época (Dias Toffoli e Luiz Fux) deram liminares para suspender a eficácia do juiz de garantias até que o Supremo decidisse. Agora o declararam constitucional. Fizeram apenas algumas interpretações sobre o tema”.
Uma das alegações teria sido o aumento de gastos. “Debateu-se muito essa questão. Mas não há aumento de gastos para o Judiciário. Se há necessidade de juiz de garantias, por tabela o juiz que vai atuar na investigação vai diminuir o trabalho de outros juízes criminais (da instrução). Aí você consegue, com estudos, às vezes transformar uma vara criminal em uma vara de juiz de garantias. Essas varas vão diminuir o seu trabalho porque parte dele vai ser executado pelo juiz de garantias”.
“Por isso você teve desde 2019 para que os tribunais fizessem a implantação. Por isso, agora, o Supremo está dando um prazo de mais 12 meses para que os tribunais realizem esse estudos e implantem o juiz de garantias na sua estrutura”. O Tribunal também entendeu que a investidura do juiz de garantias deve seguir as Normas de Organização Judiciária de cada esfera da Justiça, observando critérios objetivos a serem periodicamente divulgados pelos tribunais.
De acordo com Garcete, isso não será problema nem mesmo para comarcas de primeira entrância, que só tem um juiz, por exemplo. “Hoje os processos são todos digitais. O juiz consegue visualizar tranquilamente processo de qualquer comarca; há possibilidade de audiência por videoconferência. Então temos ai essas ferramentas, que conseguem resolver o problema das comarcas pequenas com um juiz só. Ou seja, o juiz de garantias pode ser um juiz de uma comarca vizinha da região”, argumentou.
Quanto a possibilidade do surgimento, mesmo que informal, de hierarquia entre o juiz de garantias e o juiz do processo, o magistrado afirma que não existe tal possibilidade porque todos os juízes operam com o sistema de organização judiciária, pelo qual as competências são estabelecidas por lei. Neste caso, haveria a competência do juiz de garantias para as medidas criminais anteriores à ação penal e, por outro lado, a competência do juiz da ação penal, a quem caberá processar e julgar a pretensão acusatória do Estado. São temas de competência que se diferem.
BENEFÍCIOS
Sobre os principais ganhos com a criação do juiz de garantias no ordenamento jurídico, Garcete respondeu que a criação do juiz de garantias seria um dos maiores avanços para o chamado Processo Penal Constitucional. “Considero que o Processo Penal permeia processos de evolução histórica. Embora existam várias formas de se abordar os sistemas inquisitório e acusatório no espectro global, acredito que o viés histórico é o que traz maiores justificações para a necessidade de evolução constante. Se, no passado, tivemos o sistema inquisitório, pelo qual o investigado não era considerado sujeito de direitos, mas objeto da prova, sem garantias constitucionais, na atualidade, há certa concordância entre os doutrinadores de que países de índole democrática exercitam o Processo Penal voltado ao sistema acusatório. Separa-se a função acusatória da função julgadora.
Porém, é preciso ingressar em uma nova velocidade do Processo Penal contemporâneo, onde o sistema acusatório (já afirmado) deve ser concretamente aperfeiçoado. Isso porque o modelo de sistema acusatório, com simples separação de funções entre o agente acusador e o agente julgador, mostrou-se, ao longo da experiência mundial, aquém do ideal.
Indagado sobre a existência de benefícios para o jurisdicionado, o magistrado sustentou que “para o jurisdicionado muda muito a qualidade do processo penal de um modo geral. A gente vem de uma evolução já muito grande. Por exemplo, até alguns unos atrás não existia a audiência de custódia. Então em toda prisão em flagrante vinha um ofício do delegado para o juiz. A gente batia um carimbo, que basicamente dizia “ciente da prisão em flagrante, aguarde-se a conclusão do inquérito policial”. Via de regra todo acusado permanecia preso. Com a audiência de custódia, em 2015 no Brasil, esse quadro mudou radicalmente. Determinou-se que juiz passasse a fazer uma audiência até 24 horas após a prisão e ver se é caso de prisão ou não. No primeiro ano, estatisticamente, verificou-se, que em 50% dos casos o juiz acaba colocando o preso em flagrante em liberdade. Sem ou com qualquer outra medida cautelar.”
Conforme Garcete, no caso das audiências de custódia também houve resistência, como hoje se verifica com o juiz de garantias. “Hoje é algo comum. O ser humano tem resistência ao novo. A mudança do processo físico para o digital encontrou resistência. Hoje um juiz não troca mais um processo digital pela volta do processo de papel”.
CRÍTICA
“Uma coisa que eu gostaria de pontuar aí, é a parte crítica da decisão; é que o STF excetuou o juiz de garantias em processos de violência doméstica e tribunal do júri. São áreas importantes onde é imprescindível o juiz. No caso do júri o argumento é de que lá frente do réu seria julgado pelo júri e não por um juiz singular. Por isso também houve consenso no sentido de que o juiz de garantias não atuará nos casos de competência do Tribunal do Júri e de violência doméstica. No caso de violência doméstica pela necessidade de se imprimir maior rapidez ao procedimento.” Contudo, o juiz de garantias deverá atuar nos processos criminais no âmbito da Justiça Eleitoral. Também foi mantida a regra que proíbe as autoridades penais de fazer acordos com órgãos de imprensa para divulgar operações. Nesse ponto, o colegiado considerou que a divulgação de informações sobre prisões e sobre a identidade do preso pelas autoridades policiais, pelo Ministério Público e pelo Judiciário deve seguir as normas constitucionais para assegurar a efetividade da persecução penal, o direito à informação e a dignidade da pessoa.
Juiz Carlos Garcete (foto: Daniel Neves)