Apenas 1 em cada 5 condenações por tráfico em MS têm pena reduzida por privilégio legal: especialistas apontam resistência judicial

Campo Grande/MS, 8 de maio de 2025.

Por redação.

Estudo revela que Mato Grosso do Sul está abaixo da média nacional na concessão de redução de pena a réus primários por tráfico de drogas, gerando críticas de advogados criminalistas.

Um levantamento recente do Conselho Nacional de Justiça  revelou que o Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul  aplica o chamado tráfico privilegiado em apenas 20,3% das execuções penais por tráfico de drogas. O índice está abaixo da média nacional, que é de 26,1%, e tem gerado debates entre juristas e operadores do direito quanto à interpretação e aplicação da legislação penal no estado.
O tráfico privilegiado está previsto no §4º do artigo 33 da Lei de Drogas (Lei nº 11.343/2006) e permite a redução de até dois terços da pena quando o réu for primário, tiver bons antecedentes, não se dedicar a atividades criminosas nem integrar organização criminosa.
 Em Mato Grosso do Sul, das 17.077 pessoas condenadas por tráfico de drogas, apenas 3.460 obtiveram o benefício. O impacto da não aplicação é direto: a pena média em casos sem o redutor é de seis anos de prisão, enquanto, com o benefício, a média cai para quatro anos – diferença significativa em um estado que convive com a superlotação do sistema penitenciário.
O CNJ também apontou uma discrepância de gênero na aplicação do benefício. As mulheres condenadas têm mais chances de obter a redução da pena: 33% delas foram beneficiadas, enquanto entre os homens o índice é de 25,2%.
O site Garantista questionou especialistas, que chamam atenção para o que consideram uma postura restritiva por parte do Judiciário sul-mato-grossense. Para os advogados Caio Cesar Pereira de Moura Kai (OAB/MS 22.950) e Keily Ferreira da Silva (OAB/MS 21.444), há “demasiada resistência na aplicabilidade da figura privilegiada do tráfico aqui no cenário judicial do TJ/MS, punindo severamente agentes que não se dedicam a atividades criminosas nem possuam histórico criminal, sob um viés protecionista da rota do tráfico em que se situa o estado de MS”.
Mato Grosso do Sul, por sua localização geográfica, é um dos principais pontos de entrada de drogas no Brasil, especialmente por fazer fronteira com o Paraguai e a Bolívia. No entanto, especialistas alertam para os riscos de uma abordagem que ultrapasse os limites legais e constitucionais. “Respeitosamente entende-se que grande parte das condenações de réus primários, que possuam bons antecedentes e que não se dediquem a atividades criminosas acarreta em uma violação não somente à previsão legal do Art. 33, §4º da Lei de Drogas, mas à própria natureza da persecução penal”, destacam os criminalistas.
Outro ponto de crítica diz respeito aos critérios utilizados para afastar o redutor. Segundo os advogados, é comum que Desembargadores neguem o benefício com base na quantidade de droga apreendida ou em ações penais em curso – elementos que, conforme jurisprudência consolidada no Superior Tribunal de Justiça, não deveriam ser utilizados para esse fim. “Decisões que utilizam até mesmo ações penais em curso para afastar a privilegiadora, por entender que isso configuraria ‘maus antecedentes’, estão na contramão do que determina a Súmula 444 do STJ”, afirmam.
Eles também apontam a ocorrência de um possível bis in idem – punição dupla pelo mesmo fato – quando a quantidade de droga serve tanto para agravar a pena quanto para afastar o privilégio. “A partir do elemento ‘quantidade de droga’ a pena é majorada, e ainda afastado o privilégio: punindo o agente duplamente pelo mesmo fato”, argumentam.
A advogada Herika Ratto, que atua na área criminal, reconhece que o TJ/MS adota uma postura mais rigorosa diante da realidade local, mas ressalta a importância da aplicação técnica e fundamentada da lei. “Por ser um estado fronteiriço, convivemos diariamente com o impacto direto do tráfico, o que reflete em uma política criminal mais severa por parte do Judiciário. Entretanto, é importante lembrar que os desembargadores que compõem o nosso tribunal são juristas de notório saber, plenamente cientes dos entendimentos consolidados nas cortes superiores”, pondera.
Ainda assim, ela observa que há resistência velada na aplicação do redutor. “Percebo que, em muitos casos, há uma resistência velada em aplicar o redutor previsto no §4º do art. 33 da Lei de Drogas, especialmente quando se utiliza a quantidade ou a natureza da substância como justificativa para afastá-lo, uma prática que vai de encontro à jurisprudência do STJ e STF.”
Os especialistas também chamam atenção para a prática de associar automaticamente o crime de tráfico ao de associação para o tráfico (art. 35 da Lei de Drogas) ou à causa de aumento de pena por tráfico interestadual (art. 40, V), com base apenas no local da apreensão ou na presença de mais de um agente, sem análise individualizada. “É comum a junção do Art. 33 da Lei de Drogas com a Associação para o tráfico (Art. 35) e/ou com a causa de aumento do Art. 40, inciso V pelo simples fato da droga ter sido apreendida nas extremidades geográficas do estado, presumindo que estaria em situação interestadual, ou pelo fato de conter dois agentes envolvidos já haveria associação de traficância.”, afirmam Caio e Keily.
Outro aspecto mencionado é a dificuldade de defesa em casos em que provas são colhidas a partir de ingresso em domicílio sem autorização do morador, com base apenas na presunção de crime permanente, o que desconsideraria critérios fixados pelo Supremo Tribunal Federal.
Para os especialistas, o caminho é retomar o foco no direito penal do fato – e não do autor -, com análise individualizada de cada caso, em respeito ao princípio da legalidade, ao princípio da individualização da pena e ao dever de fundamentação das decisões judiciais. “A busca defensiva é para o enfoque no direito penal do fato […] sob pena de configurar uma decisão não-fundamentada”, concluem.
A realidade local é complexa e exige equilíbrio entre repressão eficaz ao tráfico e respeito aos direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição.